Nessa semana, em parte por conta da impossibilidade de
decorar tantas senhas e nomes de usuários, em parte por causa do meu
analfabetismo digital, corro o risco de perder o domínio flizam.com. Por isso,
este é possivelmente meu último post
sem a indesejável extensão “blogspot” no nome do blog. Veja bem: possivelmente. Após algumas ligações internacionais
para o provedor do domínio, seguida de algumas horas de recuperação de logins, passwords e atualização de cartões de crédito, acredito que o
problema está resolvido, apesar de não ter recebido confirmação alguma.
Essa microscópica experiência, quando comparada a tudo de
mais importante que pode acontecer na vida, trouxe de volta à minha mente uma
verdade tão frequente, tão inegável, que perceber a sua existência chega a
parecer clichê: temos uma propensão a dar o verdadeiro valor para as coisas apenas
quando estamos prestes a perdê-las.
Por favor, perdoem-me por utilizar filosofia tão barata. A
questão é que essa ideia se presta perfeitamente como abertura de um relato de
outra experiência, que tive há cerca de vinte dias, esta certamente bem mais
relevante do que minha caça a senhas perdidas na internet.
Todos os anos, de 18 a 25 de setembro, o Brasil celebra a
Semana Nacional de Trânsito, com campanhas de conscientização para motoristas e
uma agenda nacional para discutir os problemas relativos à segurança nas ruas e
estradas. Neste ano, tive a oportunidade de participar da criação da campanha,
com objetivo de ajudar a reduzir os acidentes de trânsito no País.
Independentemente da ideia criativa, pois basta assistir o
comercial para entendê-la, o ponto importante desse trabalho foi ter histórias
reais por trás desse comercial: a história das vítimas de acidentes de trânsito
que aceitaram participar da campanha.
Para quem não trabalha em publicidade, a produção de um
comercial pode parecer algo bastante confuso e impessoal. É preciso acertar
iluminação, figurino, maquiagem, câmera, som, cenário, figuração, entre uma
série de outros detalhes técnicos, que podem transformar uma simples cena de
alguns segundos em um trabalho de muitas horas, envolvendo dezenas de pessoas.
Cheguei ao set de
filmagem – um hospital de reabilitação para crianças com deficiência – por
volta de oito da noite e encontrei o cenário típico: várias pessoas do staff andando de lá pra cá com
equipamentos de vídeo, plugando cabos, ligando refletores, acertando trilhos
para a câmera, medindo iluminação e fazendo tudo o que se faz antes de qualquer
filmagem profissional.
Porém neste caso havia uma diferença. Em vez de atores
tranquilos, sentados em suas cadeiras, esperando pelo chamado do diretor, desta
vez encontrei famílias de três vítimas de acidentes de trânsito, olhando com
alguma dúvida (e curiosidade) para toda aquela movimentação, sem ninguém ao
lado que explicasse de maneira mais clara tudo o que estava acontecendo.
No momento que entrei no set,
senti que havia uma tensão no local. Os nossos participantes eram pessoas com
sequelas graves de acidentes. E por algum momento, senti que ninguém por ali
havia conversado com eles da forma que eu gostaria que tivessem conversado
comigo, caso eu tivesse topado levar o Antonio para um comercial, por exemplo.
Pior que isso, senti que algumas pessoas evitavam olhar para eles, como se não
quisessem ser indiscretos ao observar a evidente deficiência.
Aquela situação me incomodou profundamente. Precisava
quebrar o gelo e estabelecer uma relação mais humana – e menos profissional –
com aquelas pessoas. Imediatamente pedi para ser apresentado às famílias. Falei
com eles um a um, contei que eu sou pai de uma criança com deficiência e que
conheço de alguma forma o calvário deles em incontáveis sessões de
fonoaudiologia, fisioterapia, terapia ocupacional, entre outras terapias de
reabilitação. Expliquei que fui um dos criadores da campanha e agradeci a
coragem de exporem as suas histórias em prol de uma causa importante, que é
reduzir os acidentes.
Em questão de minutos, percebi o clima mudar. Pouco a pouco,
as famílias sentiram-se mais à vontade. E a equipe no set também. A situação ficou mais confortável para que eles
pudessem compartilhar as suas histórias. Criamos vínculo. Apesar de meu filho
não ser vítima de acidente, e sim ter nascido com uma síndrome genética,
confesso que naquele momento me sentia mais parte daquelas famílias do que da
equipe de profissionais que estava produzindo a campanha. Temos uma luta em
comum por nossos direitos. Sofremos os mesmos tipos de preconceitos. Senti que
estava junto dos “meus”. E tenho certeza de que a recíproca foi verdadeira.
O primeiro participante que conheci foi o João, um pai de
família, de São Paulo. No dia do acidente, ele estava passeando de moto com a
esposa, quando decidiu parar no acostamento de uma rua. De repente, um carro
desgovernado surgiu do nada e bateu neles. João perdeu uma das pernas até a
altura da coxa. A esposa dele foi jogada para longe e faleceu por falta de
socorro. João hoje anda com prótese e trabalha para recuperar os movimentos do
braço esquerdo, que também foi atingido.
Em seguida conheci a Wellen e sua família. A Wellen tem 22
anos e sofreu um acidente com 17. Estava no banco do passageiro, sem o cinto de
segurança. O motorista sofreu apenas pequenos ferimentos. Wellen, por outro
lado, foi jogada pra fora do carro e ficou em coma por dois anos. Depois de
acordar, progrediu muito. Deixou de se alimentar por sonda e já consegue
ingerir alimentos pastosos. Porém ainda não recuperou os movimentos do corpo e
não se comunica pela fala. Aprendeu um sistema de comunicação por sinais dos olhos.
E está batalhando para conseguir se comunicar por computador.
Por fim conheci a Andrea, uma garota de 29 anos que sofreu
um acidente em 2010. Ela estava voltando de uma noite com as amigas. Ao buscar
o carro na casa da amiga, chegou a ser convidada para dormir lá, mas recusou.
Andrea não se lembra detalhadamente do que aconteceu, mas parece que bateu num
carro, sem grandes consequências. Não se sabe exatamente porque, em vez de
descer do carro e resolver o problema, Andrea fugiu da situação. Nesta fuga
colidiu novamente, desta vez num poste, e com gravidade. Andrea também ficou em
coma e hoje se movimenta com bastante dificuldade, com auxílio de andador.
Também teve a fala e a visão afetadas.
Apesar dos imensos desafios que têm à frente e de obviamente
ainda sofrerem muito ao relatarem suas histórias, todas as famílias que participaram
da campanha mantêm uma postura de perseverança. O maior sinal de atitude
positiva é ter objetivos de vida. E isso todos eles mostraram ter. João recusou
a aposentaria a que tem direito e está treinando para participar de maratonas e
campeonatos de futebol. Wellen está focada em conseguir se comunicar por
computador para voltar a estudar direito, curso que interrompeu por causa do
acidente. Andrea chegou a dizer na campanha que “não desiste nunca” e quer
voltar a trabalhar.
Além de ter desenvolvido um inevitável afeto em tempo
recorde por essas pessoas, fiquei imaginando o quanto eles devem ter passado a
dar valor à vida que por pouco não perderam. Infelizmente os acidentes
trouxeram mais consequências ruins do que boas. Mas é inegável que após esse
tipo de experiência as pessoas mudam pra melhor. As perdas e ganhos tomam novas
proporções. E é nisso que me identifico com eles. É nesse ponto que o Antonio
me transformou.
Assim como João, Wellen e Andrea, eu sei o quanto o simples
ato de andar é importante e difícil. Sinto diariamente na pele (na verdade, na
coluna) as dificuldades do meu filho. Assim como os parentes de João, de Wellen
e de Andrea, também sei como é passar por uma tragédia na família – tragédia
não é a melhor palavra, mas é a que vou usar. Sei como é viver aquilo que
ninguém quer viver. Experimentei na minha própria vida aquilo que chamamos de
azar.
Olhando para trás, vejo que o que mais me tocou ao fazer essa
campanha foi ver que mais do que perder uma perna, mais do que perder os
movimentos, mais do que perder a fala, aquelas famílias perderam algo que só
atrapalha as nossas vidas: a sensação de
invulnerabilidade. E entendi que é por isso que me sinto como um deles.
Porque foi exatamente isso que eu perdi, no instante em que vi meu filho
nascer.
Se quiser conhecer, assista o making of e o filme da campanha aqui.
me tocou. Acho que serei um motorista melhor e mais responsável a partir de hoje;
ResponderExcluirA intenção é essa. Abraço
ExcluirGrande Fábio, parabéns pela bela campanha, pela postura no set e pela clareza de raciocínio que nos revela a óbvia, porém difícil de enxergar, verdade da vida. A de que somos todos vulneráveis. Disse tudo. Abração
ResponderExcluirAbraço, Claudão
ExcluirAbsolutamente fantástico o seu depoimento!
ResponderExcluirTe admiro muito Fabinho!
Bjs
Obrigado Nina. bj
ExcluirEu aprendi a dirigir corretamente e defensivamente depois de dois episódios: 1. meu pai caiu em um penhasco comigo, irmão e um primo, por sorte, uma árvore minúscula impediu que caíssemos... 2. voltando de um rave, acabou o efeito do "redbull" e dormi ao volante por alguns segundos... Acordei com o pneu batendo nos "olhos de gato" da Imigrantes em SP. Depois nunca mais foi desatento com quem dirige comigo e muito menos quando eu dirijo. Tenho amigos que sobreviveram a coisas terríveis que dispensam comentários... Hoje, com minha esposa grávida, tomo mais cuidado ainda... Eu posso tomar cuidado com os outros, mas tenho muito medo de quem está ao lado dirigindo... E se vc perder a "briga" com o Blogger, seguirei lendo teu blog hehe avise se mudar rs
ResponderExcluirGanhei a briga. O domínio continua comigo. Nos vemos por aqui às segundas. Abraço
ExcluirConheci o blog atraves de uma amiga. Vc realmente tem o dom da escrita, nos toca de verdade!!1 Que Deus abençoe vc e sua família!!!
ResponderExcluirQuerido Fábio. Parabéns pelo projeto. Tocante =)
ResponderExcluirBjs,
Daniela Morato