“Meu filho vai ter nome de
santo
Quero o nome mais bonito.”
Um dos primeiros discos que
ganhei na vida foi “As Quatro Estações”, da Legião Urbana. Tenho guardada na
memória a cena em que eu tiro o vinil da sacola e fico olhando para a capa prateada,
sem ter certeza do tipo de música que aquela banda tocava. Mal sabia eu que
estava em frente a um dos presentes que eu mais aproveitaria, e que eu o
ouviria centenas de vezes, e que ficaria horas lendo as letras (como era bom ter
encartes com as letras!), até decorá-las todas. Tempos bons. Pelas minhas
contas, desde aquela época já se vão quase cem estações. E hoje, depois de
abandonar Brasília e de voltar para ela, depois de ser pai, depois de viver um
pouco, vejo que letras de músicas como “Pais e Filhos” e “Há Tempos” continuam
a falar profundamente com a minha alma, apesar dos anos. Talvez por isso
assistir a Faroeste Caboclo no cinema e ir a um show em tributo a Renato Russo,
como fiz há algumas semanas, tenham tido um gosto tão especial.
Nos últimos meses, a vida
com o Antonio – e com a sua deficiência que tanto nos assustava – tomou um rumo
de normalidade bastante inesperado, dadas as expectativas usuais de uma família
com uma criança especial. Há dois anos, nem no mais otimista dos meus dias eu
poderia imaginar que tão cedo estaríamos com as rédeas nas mãos e tocando o
dia-a-dia com certa tranquilidade, apesar da imensidão de incertezas que ainda
persiste em relação ao futuro dele. O fato é que estabilidade de saúde, de
rotina e de sono pareciam utopias há não muito tempo. Por sorte não eram. Pouco
a pouco, fomos encontrando os medicamentos, os alimentos e as terapias que nos
livraram das frequentes e desgastantes visitas ao hospital. Hoje só temos o
sono interrompido por uma virose ali, uma tosse aqui, nada fora do comum.
Só que todo ser humano vem
com um defeito de fábrica e apresenta uma insistência em procurar sarna para se
coçar. E já que o Antonio cresce, engorda e sorri, a neurose dos pais se volta
quase completamente para o seu desenvolvimento cognitivo e motor, que é
ascendente, porém lento, extremamente lento.
Criar uma criança que tem
deficiência física e intelectual é, antes de tudo, um teste de paciência. Entendo
perfeitamente quando me dizem que ter um filho especial é um presente. E é.
Porém é um daqueles presentes que vêm com manual, dos grandes, sem figuras, e numa
língua que você não consegue decifrar.
O maior desafio é decidir
qual a melhor forma de ensinar a criança ou tratar um problema de saúde. E é importante
entender que todas as soluções têm prós e contras. Escolher todos os caminhos
reduz a chance de sucesso, pela falta de consistência. Escolher apenas um é
como fazer uma aposta: pode dar certo, mas pode ser pura perda de tempo. A
decisão natural passa necessariamente pela busca de mais informações com
profissionais da área. Para nossa decepção, há sempre defensores e opositores
de todo e qualquer método. Quase sempre temos profissionais da nossa confiança
defendendo – com argumentos críveis e embasados – caminhos opostos sobre um
mesmo tema.
Explico de forma mais
prática. Com cerca de um ano de idade o Antonio começou a sustentar os braços
no chão, como se quisesse engatinhar, porém não ficava de quatro, na posição do
gato. Em vez disso, ficava com as pernas esticadas no chão, bem abertas,
parecendo uma rã atropelada da cintura para baixo. Para ajudá-lo a manter as
pernas mais fechadas, uma profissional da nossa extrema confiança sugeriu, na
época, que amarrássemos um pano e volta das pernas dele, fazendo um “oito”, sem
apertar, apenas para estabelecer um limite na abertura das pernas. Assim,
quando o Antonio tentasse engatinhar, era mais provável que ele subisse o
bumbum e ficasse com os joelhos no chão. Achamos a ideia excelente e seguimos a
sugestão. Porém, ao comentar com outra profissional de igual confiança, ouvimos
a sugestão oposta: que deixássemos o Antonio com as pernas livres, pois elas
eram bastante ativas. E que fizéssemos uma série de brincadeiras e estímulos,
mas sem amarras. Ela acreditava que o não engatinhar era uma questão
neurológica, não física. E que o Antonio só ficaria na posição do gato quando o
seu cérebro estivesse pronto, e não por causa da amarração.
Quando duas pessoas
preparadas, confiáveis, embasadas por conhecimentos científicos e por anos de
experiência, indicam caminhos excludentes, qual seguir? E quando a terceira
opinião indica um terceiro caminho?
Onde guardar o medo de tomar
a decisão errada? Como evitar o receio de ouvir de um profissional, daqui a
alguns anos, que se você tivesse escolhido a outra terapia, o outro método, o
outro medicamento, seu filho poderia estar melhor?
Pelo menos no caso do
Antonio, esta é uma angústia que se repete em diversas esferas. Por exemplo, a
consistência mais adequada da comida: em pedaços, para desenvolver os músculos
da face e a mastigação, ou em consistência pastosa, para não correr risco aspirar
alimento e ter complicações? O antibiótico que ele toma diariamente: devemos
continuar, para mantê-lo longe de internações hospitalares, ou devemos
descontinuar e procurar uma solução mais arriscada para as infecções urinárias,
como uma cirurgia? A ressonância magnética que ele precisa fazer para sabermos
se escuta direito: devemos fazer, e correr todos os riscos cardíacos e
respiratórios envolvidos com uma anestesia geral, ou devemos não fazer, e possivelmente
prejudicar o desenvolvimento dele por não usar um aparelho de audição?
As dúvidas apenas aumentam
com relação ao desenvolvimento. Hoje o Antonio engatinha, mas do jeito dele,
diferente das demais crianças. É melhor deixá-lo utilizar sua própria forma,
mas conseguir exercer a função? Ou é melhor insistir (sabe-se lá por quanto
tempo) que aprenda a forma certa, para que siga para as próximas fases com mais
êxito e firmeza? O Antonio não leva nenhum alimento à boca (bolacha, pirulito,
doces, nada), porém passa o dia inteiro mordendo brinquedos e os dedos. O
quanto podemos insistir com um biscoito (e correr o risco de criar uma aversão)
e o quanto devemos deixá-lo livre para explorar apenas o que gosta? E seguimos
assim por diante, com as perguntas se multiplicando em progressão geométrica.
O consolo é que, para
algumas dessas questões, quando menos se espera a resposta chega. Por muito
tempo tive uma dúvida extremamente dolorida: será que meu filho sabe que eu sou
o pai dele? As razões para duvidar eram muitas. Ele não estranhava ninguém, mal
percebia quando eu saía de casa, não atendia quando eu chamava o seu nome. Até
que um dia, sentindo coceiras no rosto por ter adotado um visual Osama Bin
Laden, eu decidi tirar a barba, alvo preferido do Antonio, quando ele está no
meu colo. Nunca vou me esquecer da confusão nos olhos dele quando tocou pela
primeira vez no meu rosto liso. Ele afastou as mãos imediatamente e ficou me
examinando, tentando entender o que tinha acontecido. Ele fez mais uma
tentativa e novamente retirou as mãozinhas, como se sentisse gastura com a nova
textura da minha pele. A voz era a mesma, mas a imagem não era. E naquela
noite, ele não se divertiu comigo da mesma forma que nos outros dias. O pai
dele tinha barba. Logo, eu podia ser parecido, mas provavelmente não era o pai
dele.
Em poucos dias, a barba
voltou, assim como as puxadas e unhadas do meu filho. O pai finalmente estava
de volta, do jeito que ele reconhece. Como falei, o Antonio está progredindo.
Hoje ele vem a mim engatinhando quando eu o chamo. Estica os braços para que eu
o pegue no colo. Às vezes toca na minha barba quando estou com ele de
madrugada, e tenho certeza que é assim que ele identifica que sou eu, e não
outra pessoa. Sei que nada disso parece excepcional para uma criança. Parecem
detalhes sem importância. Mas depois de meses (anos, na verdade) esperando por
esses sinais, cada gesto é uma emoção inesquecível.
Não tenho a menor ideia se
um dia vou ouvi-lo me chamar de pai. Não tenho controle algum do que ele
aprende ou deixa de aprender. Não sei o quanto o Antonio compreende do mundo.
Mas cada vez que ele passa a fazer algo que tentamos ensiná-lo incontáveis
vezes, cada vez que ele dá um retorno aos nossos insistentes estímulos, eu sou
tomado por uma satisfação tão grande, que faz todo o esforço valer.
Outro dia um vizinho
comentou comigo: “deve ser interessante acompanhar o desenvolvimento dele, né?
Porque às vezes o meu filho pode levar umas duas horas para aprender algo, enquanto
o seu pode levar muito mais, talvez semanas. Deve ser emocionante ver o Antonio
aprendendo as coisas.”
Fiquei algum tempo pensando
que minha vida seria bem mais fácil se o Antonio aprendesse tudo mais rápido. Gentil,
o meu vizinho quis ressaltar um ponto de vista positivo com relação à
deficiência do Antonio. Apesar das dificuldades, é como se eu tivesse o
privilégio de assistir a cada instante em câmera lenta. E por um lado, meu
vizinho tem razão. Criar o Antonio é ver a mágica acontecer quadro a quadro,
com longas pausas entre cada uma delas. Minha única dúvida é se isso é algo bom
ou ruim. Não tenho certeza se viver essa experiência me faz mais ou menos feliz do
que um pai de uma criança com desenvolvimento regular. Na verdade, cada vez que
o Antonio estica os braços para mim, ele me lembra que este tipo de comparação
com outras famílias já não faz mais sentido. Ele me ama, mesmo que tenha que
esperar minha barba crescer. Eu o amo, mesmo que tenha que esperar para ele
aprender. Como bem cantou Renato Russo, temos nosso próprio tempo.