segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

Caça-palavras


Outro dia estava escrevendo um parágrafo sobre o brasileiro. E como se não tivesse um caminhão de coisas para fazer, fiquei algum tempo pensando que havia algo de errado com aquela palavra: brasileiro. O problema não são os nascidos no Brasil, longe disso. É o “eiro” que soava estranho. Porque, em português, quando se quer indicar a nacionalidade de uma pessoa, os sufixos mais comuns são “ano”, “eno”, “ino”, como em angolano, chileno, argentino. Há ainda o “ês”, de chinês; o “ão”, de afegão; o “ense”, de canadense”; e até o esquisito “ol”, de espanhol. Outros termos mais específicos, como belga, austríaco e paraguaio, também aparecem de vez em quando, porém com “eiro” até agora só encontrei sentidos que indicam um hábito ou estilo de vida. Na nossa língua, “eiro” é mais um jeito de ser do que um país de origem. José é pagodeiro. Miguel é baderneiro. Francisco é marinheiro. E sabe o Joaquim, aquele navegante boa vida, que passava anos deste lado do oceano enchendo o barco de pau-brasil, a pança de tapioca e a cama de índias? Era chamado de brasileiro.

Não sou sociólogo, nem historiador, mas minha cabeça é afeita a este tipo de devaneio. O peso das palavras. O que cada termo realmente quer dizer, e com qual intensidade. Esta é uma ciência negligenciada na correria do dia-a-dia e até invisível aos ouvidos menos atentos. Entretanto pode ser fatal no dizer, no sentir e principalmente no escrever.

Há algumas semanas, em um grande evento sobre os direitos das pessoas com deficiência, a presidente (este texto não permite o “denta”) Dilma Rousseff cometeu a gafe de pronunciar em seu discurso o obsoleto termo “portador” de deficiência. Recebeu em troca uma enorme vaia do público presente, a quem tentava – sem sucesso – transmitir o seu compromisso com a causa. Imagino o constrangimento da presidente e o desespero do assistente que redigiu o texto. E o pior: deve ter sido aquele desespero de quem não sabe qual foi o seu crime.

Para explicar de maneira didática, a palavra “portador” é mais indicada para quem está carregando algo portável, ou seja, algo que possa ser levado de um lado para o outro e que, pela lógica, possa deixar de ser portado em algum momento. Um policial pode portar uma arma durante o dia. E pode deixar de portá-la à noite. Um navio pode portar um avião em alto mar. E depois deixar de portá-lo, quando a aeronave decolar. Agora pense bem. Como uma pessoa pode portar uma deficiência, se no fim do dia ela não pode se desfazer desta característica? A deficiência, seja ela qual for, faz parte da pessoa. Não é algo que ela carrega de lá pra cá, como se tivesse feito uma opção. Isto vale mesmo para deficiências com chances de reversão, como um paraplégico que pode voltar a andar. Mesmo que recupere os movimentos, a pessoa não portou nada durante tempo algum. São os mesmos membros, antes paralisados, que agora voltaram a exercer suas funções motoras.

Em todos os casos, é mais prático e certeiro usar o termo “deficiente”, com o simples e usual “ente”, tão bem aceito em outras palavras, como inteligente, fluente ou paciente. Se por acaso a palavra lhe parecer pesada ou depreciativa, tenha certeza que é efeito da falta de uso, dos floreios eufemísticos ou de neologismos desnecessários da nossa língua. Para não haver dúvidas, alguém sem uma perna é deficiente físico. Alguém com diferenças cognitivas é deficiente intelectual. Cego é sinônimo de deficiente visual. Surdo é o mesmo que deficiente auditivo. Alguém com mais de um destes exemplos é deficiente múltiplo. E todos são pessoas com deficiência, ou apenas deficientes, o que não os faz melhor ou pior do que ninguém, simplesmente únicos, diferentes, com características específicas, como todo ser humano. No Brasil, somam 45,6 milhões de pessoas. Quase ¼ da população.

“Pessoa normal”, “retardado mental”, “necessidade especial”. O dicionário polêmico sobre o assunto é imenso. E nem sempre há consenso sobre quais os termos mais adequados. O que há, como em qualquer outro assunto, é uma convenção estipulada com base no pensamento vigente da época. Bobagem? Nem tanto. Leia uma revista feminina de quarenta anos atrás. Leia uma notícia de jornal do início do século passado. Leia a bíblia. Os tempos mudam e a linguagem muda junto. O que era permitido outro dia, hoje pode ser inaceitável. O que todo mundo dizia ontem pode ser crime amanhã.

Sim, o politicamente correto é chato e hipócrita. Não, as pessoas não deixarão de fazer piadas ou de dizer o que quiserem. Porém, ter um parâmetro do que é culturalmente ético e do que é legalmente proibido é fundamental para a nossa evolução, como indivíduos e como nação. Conhecer e ter costume de usar os termos adequados é mandatório. Promover uma caçada às palavras que perderam o seu lugar na nossa linguagem é imporante. Assim o pobre redator da gafe da Dilma ao menos sabe o erro que cometeu. Assim os humoristas têm ao menos noção de quando estão infringindo uma lei. Assim você pode escolher as suas palavras de forma consciente, o que ajuda muito em todas as situações, seja para discutir o relacionamento, seja para sustentar uma tese de mestrado.

Ontem almocei com familiares que voltavam de férias no nordeste. Um deles me contou que foi ao banheiro em um bar de praia e, quando chegou lá, foi surpreendido pelo que viu. Na porta do feminino estava escrito “buceta”, “periquita”, “perseguida”, “caverna”, “xana” e mais dezenas de nomes para “vagina”. Na porta do masculino, tinha “piroca”, “cacete”, “pinto”, “bilau”, “jeba” e outros incontáveis termos populares para “pênis”. É uma pena que ele não tirou uma foto. Teria sido a imagem deste texto. Porque prova que nós brasileiros, quando temos interesse por um assunto, não temos deficiência alguma de vocabulário. E que sempre encontramos a palavra certa a dizer.


4 comentários:

  1. Fábio,

    Muito boa a reflexão. Me lembrou a frase que li num quadro, que diz: we are all the same under neath the skin.

    Também, o texto, foi aprendizado para mim. Nunca tinha refletido sobre a palavra portador. Daqui para a frente usarei a correta - deficiente. Percebi também que o sufixo ente vem de gente. Cada texto teu me faz aproximar mais e mais de gente como a gente. E mais, aproximo-me de mim mesma - quem se nós não tem uma deficiência ?

    Beijos.

    Mãe




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  2. excelente texto, fuderoso mesmo. embora eu prefira "presidenta" e "pessoa com deficiência". Um belo início de conversa pra quem acha que as palavras não significam nada:):)

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    1. Obrigado, Ivan. É início de conversa mesmo, como tudo o que coloco aqui. Abraço

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