Outro dia estava escrevendo
um parágrafo sobre o brasileiro. E como se não tivesse um caminhão de coisas
para fazer, fiquei algum tempo pensando que havia algo de errado com aquela
palavra: brasileiro. O problema não são os nascidos no Brasil, longe disso. É o
“eiro” que soava estranho. Porque, em português, quando se quer indicar a
nacionalidade de uma pessoa, os sufixos mais comuns são “ano”, “eno”, “ino”,
como em angolano, chileno, argentino. Há ainda o “ês”, de chinês; o “ão”, de
afegão; o “ense”, de canadense”; e até o esquisito “ol”, de espanhol. Outros termos
mais específicos, como belga, austríaco e paraguaio, também aparecem de vez em
quando, porém com “eiro” até agora só encontrei sentidos que indicam um hábito
ou estilo de vida. Na nossa língua, “eiro” é mais um jeito de ser do que um país de origem. José
é pagodeiro. Miguel é baderneiro. Francisco é marinheiro. E sabe o Joaquim,
aquele navegante boa vida, que passava anos deste lado do oceano enchendo o
barco de pau-brasil, a pança de tapioca e a cama de índias? Era chamado de brasileiro.
Não sou sociólogo, nem
historiador, mas minha cabeça é afeita a este tipo de devaneio. O peso das
palavras. O que cada termo realmente quer dizer, e com qual intensidade. Esta é
uma ciência negligenciada na correria do dia-a-dia e até invisível aos ouvidos
menos atentos. Entretanto pode ser fatal no dizer, no sentir e principalmente
no escrever.
Há algumas semanas, em um
grande evento sobre os direitos das pessoas com deficiência, a presidente (este
texto não permite o “denta”) Dilma Rousseff cometeu a gafe de pronunciar em seu
discurso o obsoleto termo “portador” de deficiência. Recebeu em troca uma
enorme vaia do público presente, a quem tentava – sem sucesso – transmitir o
seu compromisso com a causa. Imagino o constrangimento da presidente e o
desespero do assistente que redigiu o texto. E o pior: deve ter sido aquele
desespero de quem não sabe qual foi o seu crime.
Para explicar de maneira
didática, a palavra “portador” é mais indicada para quem está carregando algo
portável, ou seja, algo que possa ser levado de um lado para o outro e que, pela
lógica, possa deixar de ser portado em algum momento. Um policial pode portar
uma arma durante o dia. E pode deixar de portá-la à noite. Um navio pode portar
um avião em alto mar. E depois deixar de portá-lo, quando a aeronave decolar.
Agora pense bem. Como uma pessoa pode portar uma deficiência, se no fim do dia
ela não pode se desfazer desta característica? A deficiência, seja ela qual
for, faz parte da pessoa. Não é algo que ela carrega de lá pra cá, como se
tivesse feito uma opção. Isto vale mesmo para deficiências com
chances de reversão, como um paraplégico que pode voltar a andar. Mesmo que recupere
os movimentos, a pessoa não portou nada durante tempo algum. São os mesmos
membros, antes paralisados, que agora voltaram a exercer suas funções motoras.
Em todos os casos, é mais
prático e certeiro usar o termo “deficiente”, com o simples e usual “ente”, tão
bem aceito em outras palavras, como inteligente, fluente ou paciente. Se por
acaso a palavra lhe parecer pesada ou depreciativa, tenha certeza que é efeito
da falta de uso, dos floreios eufemísticos ou de neologismos desnecessários da
nossa língua. Para não haver dúvidas, alguém sem uma perna é deficiente físico.
Alguém com diferenças cognitivas é deficiente intelectual. Cego é sinônimo de
deficiente visual. Surdo é o mesmo que deficiente auditivo. Alguém com mais de
um destes exemplos é deficiente múltiplo. E todos são pessoas com deficiência,
ou apenas deficientes, o que não os faz melhor ou pior do que ninguém,
simplesmente únicos, diferentes, com características específicas, como todo ser
humano. No Brasil, somam 45,6 milhões de pessoas. Quase ¼ da população.
“Pessoa normal”, “retardado
mental”, “necessidade especial”. O dicionário polêmico sobre o assunto é
imenso. E nem sempre há consenso sobre quais os termos mais adequados. O que há,
como em qualquer outro assunto, é uma convenção estipulada com base no
pensamento vigente da época. Bobagem? Nem tanto. Leia uma revista feminina de
quarenta anos atrás. Leia uma notícia de jornal do início do século passado. Leia a bíblia.
Os tempos mudam e a linguagem muda junto. O que era permitido outro dia, hoje
pode ser inaceitável. O que todo mundo dizia ontem pode ser crime amanhã.
Sim, o politicamente correto
é chato e hipócrita. Não, as pessoas não deixarão de fazer piadas ou de dizer o
que quiserem. Porém, ter um parâmetro do que é culturalmente ético e do que é
legalmente proibido é fundamental para a nossa evolução, como indivíduos e como
nação. Conhecer e ter costume de usar os termos adequados é mandatório. Promover uma caçada às palavras que perderam o seu lugar na nossa linguagem é imporante. Assim o
pobre redator da gafe da Dilma ao menos sabe o erro que cometeu. Assim os
humoristas têm ao menos noção de quando estão infringindo uma lei. Assim você
pode escolher as suas palavras de forma consciente, o que ajuda muito em todas
as situações, seja para discutir o relacionamento, seja para sustentar uma tese
de mestrado.
Ontem almocei com familiares
que voltavam de férias no nordeste. Um deles me contou que foi ao banheiro em
um bar de praia e, quando chegou lá, foi surpreendido pelo que viu. Na porta do
feminino estava escrito “buceta”, “periquita”, “perseguida”, “caverna”, “xana”
e mais dezenas de nomes para “vagina”. Na porta do masculino, tinha “piroca”, “cacete”,
“pinto”, “bilau”, “jeba” e outros incontáveis termos populares para “pênis”. É
uma pena que ele não tirou uma foto. Teria sido a imagem deste texto. Porque
prova que nós brasileiros, quando temos interesse por um assunto, não temos deficiência
alguma de vocabulário. E que sempre encontramos a palavra certa a dizer.