Estou de mudança. Literalmente. Caixas, caminhão e centenas de ligações
para acionar o gás, a luz, o telefone, a internet, a TV por assinatura. Os
próximos dias são de transição. Fico com duas casas e, ao mesmo tempo, meio sem
lar. As roupas estão em um endereço, os controles remotos já estão em outro. O filho
está em um terceiro, a casa da avó. A mulher, merecidamente, viajando de férias
com as parentas. Sozinho, vou escrevendo as últimas linhas de uma história que
foi muito mais intensa do que imaginei: a história da casa em que a Ana e eu iniciamos
a nossa família. O lugar em que geramos uma vida, sem saber que na verdade
estávamos gerando a virada das nossas próprias vidas.
Há alguns dias li na internet uma carta que teve enorme repercussão. Foi
escrita por John Franklin Stephens, um norte-americano com síndrome de Down, em
resposta à atitude de Ann Coulter, uma partidária republicana, que havia se
referido ao democrata Barack Obama como “retardado” em uma rede social. Com
extrema elegância, o autor da carta disserta sobre a inadequação do termo, não
apenas para definir o político em questão, mas também para se referir a
qualquer pessoa. E conclui com um convite absolutamente gentil para que a
agressora visite e conheça o time de atletas especiais do qual ele, Stephens,
faz parte. “Veja se você consegue sair com o seu coração inalterado”, desafia o
rapaz.
Talvez ele não tenha sucesso com Ann Coulter, porém sem dúvida já
amoleceu milhares de outros corações. A carta é bem escrita, contém uma ironia
inteligente e seria admirável mesmo que o autor não tivesse deficiência alguma.
Disfarçada de discussão sobre o uso da palavra “retardado”, a carta é um
manifesto em favor do respeito às pessoas, de forma plena e universal, seja
político, seja negro, seja deficiente físico ou intelectual.
Li, gostei, espalhei e achei que a carta seria tema único do post.
Porém, para minha surpresa, a semana ainda me reservava mais um divertido
ataque a diversos preconceitos, em especial o preconceito contra pessoas com deficiências
físicas. Por um milagre da minha circunstancial vida de “pãe” e mestre-de-obras,
arranjei um jeito de ir ao cinema e ver “Intocáveis”, filme que tanto me
recomendavam. A esta altura, acredito ser o último terráqueo a conhecer a
história do imigrante pobre e negro que se tornou cuidador de um homem rico e
tetraplégico, e o faz da maneira menos convencional possível. E, como muitos
haviam me prometido, saí do cinema com um sorriso por dentro.
Para mim, o especial da história é o jovem não fingir que não vê. Ele se
recusa a respeitar os códigos sociais hipócritas, os quais não sei se
desvaloriza ou se simplesmente não compreende. Quando vê algo diferente, como
um homem sem os movimentos, ou uma mulher muito bonita ou uma pintura ridícula
que vale 30 mil euros, o rapaz arregala os olhos, faz perguntas e,
diferentemente da maioria, verbaliza a sua opinião mais sincera sobre o
assunto. Ri do que é ridículo, lamenta o que é triste e toca a vida sem se
fazer de vítima, sem ter pena de si, nem dos outros.
Quando
algo triste e inesperado acontece, é quase impossível não sentir
pena de quem sofreu o baque. É difícil olhar para uma deficiência
causada por
um acidente, por exemplo, sem refletir sobre o sofrimento daquela
pessoa, ou
sem se deixar abater pelas dificuldades daquela nova situação. Acidentes
com sequelas, síndromes genéticas, doenças terminais, deficiências
físicas ou intelectuais são sim assuntos muito complexos de absorver,
especialmente para quem nunca os teve por perto. Em um primeiro momento,
a pena
é um sentimento involuntário e natural. E não devemos nos culpar por
tê-la.
O problema é que a pena é como uma catarata nos olhos: com o tempo, vai
cegando. Quando persistente, a pena se disfarça de sentimentos como ternura e
compreensão, mas na verdade é indício de preconceito e não-aceitação. Alimentar
a pena é acorrentar o sujeito ao estigma do coitado e eternizá-lo na posição de
“café-com-leite” da vida. Ter pena é pensar que os outros não poderão mais
correr, casar, comer, viajar, transar, dançar, rir, chorar, trabalhar. Ter pena
é acreditar que após uma adversidade é impossível ser feliz.
Quando estou com o Antonio nas ruas, recebo muitos sorrisos bondosos. As
crianças, por outro lado, arregalam os olhos, franzem a testa, fazem caretas, às
vezes voltam alguns passos para olhar mais de perto para o rosto do meu filho.
É claro que isto me agride por dentro, mas compreendo. O Antonio chama atenção.
É natural que os pequenos o explorem. O que me incomoda, entretanto, é a reação
de alguns pais, quando percebem que meu filho é especial. Muitas vezes, por um
reflexo automático, esforçando-se para manter o sorriso no rosto, puxam de leve
os seus próprios filhos pelos braços, afastando-os do Antonio, interrompendo
qualquer possibilidade de interação. (Daí, pela minha interpretação, a total
adequação do título do filme “Intocáveis” – a primeira ação que o
preconceito elimina é o toque.)
Porém, aos poucos, espalhando informação, aprimorando a minha reação,
vejo o cenário em minha volta mudar. Sinto amigos, familiares e conhecidos
seguros ao interagirem comigo, com a Ana e principalmente com o Antonio. Vejo
desconhecidos mais confortáveis em perguntar o que ele tem, e agir naturalmente
após uma ou duas respostas básicas. Empacotando nossos pertences para levar à
casa nova, vou relembrando o quanto cresci – o quanto crescemos – com a chegada
do Tom, e como as coisas se acalmaram desde então.
O
pai sofrido que fui há
alguns meses ficará nesta casa antiga, junto com outras lembranças, pois
já não
existe mais. O que minha família passou deixou sequelas, formou
cicatriz, mas nos
transformou em pessoas mais capazes de lidar com os desafios da vida,
que são
muitos. E percebo que, assim como o garoto com síndrome de Down que
escreveu a carta, assim
como cuidador marroquino e o deficiente francês que inspiraram o roteiro
de "Intocáveis", assim como o meu filho Antonio, cada vez mais pessoas
estão quebrando
preconceitos e transformando as pessoas em seu redor. Pode soar ingênuo, pode soar demasiado esperançoso, mas acho que o mundo também está de mudança.
Para melhor.