segunda-feira, 24 de setembro de 2012

Amor na Pangeia

Até que se prove o contrário, vigora a teoria de que, há 200 milhões de anos, ou 540 milhões, não se tem certeza, os continentes eram um bloco de terra chamado Pangeia. Não que alguém de fato a chamasse assim, visto que o primeiro ancestral do homem àquele tempo ainda nem pensava em ser uma ideia possível, muito menos em existir. Porém, é justo pressupor que algum tipo de vida havia, e que este ser vivo – ao qual, por questões práticas, chamaremos de Pablo –, assim como qualquer outro ser biologicamente ativo, só pensava em comer, fosse para logo em seguida se atirar na rede com um palito de dentes no canto da boca, fosse no sentido, digamos assim, menos literal: o de se reproduzir.

Pablo era um desses primeiros lagartos de tamanho modesto e pernas finas que perambulavam Pangeia adentro afoitos por comida e fêmeas. Não tinha lá grandes ambições além das que envolviam a própria sobrevivência e a continuação da espécie. Seu cérebro pouco avantajado nunca seria capaz de imaginar, nem mesmo no seu ponto mais alto de falsa modéstia, que seus hectanetos, meros milhões de anos depois, teriam as dimensões e a imponência de prédios de três ou quatro andares, e que seriam tão respeitados, tão admirados, tão temidos, que entrariam para a história com um nome bastante fidedigno ao seu status quo na sociedade cretácea – os tiranossauros.

Pois bem. Fazia uma linda tarde de sol sem previsões de erupções vulcânicas nas areias de Ipanema, praia que ainda não existia e que, por estar localizada bem ao centro da Pangeia, assemelhava-se mais ao interior do Mato Grosso do que ao atual Rio de Janeiro, quando Pablo avistou Maria Cristina pela primeira vez.

Maria Cristina, para os que ainda não deduziram, era uma réptil mais ou menos idêntica a Pablo, com as únicas diferenças de que era capaz de botar ovos e tinha a decência de não arrotar após se fartar com as entranhas de um inseto ou com outro quitute de igual teor gorduroso. Não era exatamente uma mulher graciosa. Tinha os olhos um tanto esbugalhados e a pele enrugada. Mas para Pablo pareceu uma visão de Afrodite, mesmo que ele não tivesse a menor ideia do que uma deusa grega viria a ser, parecer ou significar.

É verdade que Maria Cristina não sentiu os mesmos arrepios de seu pretendente na ocasião do primeiro encontro. Porém, ela andava preocupada, já não era mais mocinha, e as vizinhas, todas bem arranjadas, começavam a comentar. Mais por desespero do que por desejo, achou oportuno soltar os feromônios para aquele forasteiro magricela que, apesar de um tanto inseguro e zero sex appeal, ao menos serviria para acertar os ponteiros de seu relógio biológico, cujo alarme já berrava de vontade de ver a casa cheia de lagartixas engatinhando de fraldas para lá e para cá. Após uma desastrosa investida de Pablo, que se aproximara lambendo os lábios e colocando as mãos onde não devia, Maria Cristina respirou fundo e, determinada a desencalhar e calar a boca das amigas, aceitou reencontrá-lo naquele mesmo lugar, dali a dez minutos, para o acasalamento.

O sangue gelado de Pablo borbulhava de ansiedade. Não somente por seu instinto de macho alfa – ou beta, ou gama... deixa pra lá –, mas também porque seus amigos, um bando de zombadores, como todo grupo de machos na natureza, faziam correr um burburinho pela Pangeia. Era só tomarem uns copos a mais para soltarem, às gargalhadas, que as buscas de Pablo pelo pão de todo dia e por namoradas até então só haviam sido bem sucedidas no primeiro intento. Ninguém poderia afirmar, mas para todos os que o conheciam de perto, Pablo ainda era virgem. Suspeita que ele ansiava avidamente por enterrar.

Mas a Pangeia era um continente irônico e, justo no momento em que Pablo avistou Maria Cristina se aproximar do local combinado, completamente nua e irresistível, as placas tectônicas da Terra resolveram discutir o relacionamento e desfazer uma união que já durava muitos bilhões de anos. Foi um desespero só: pedras rolavam montanha abaixo, árvores estratosféricas caíam feito fruta madura, animais de todos os portes eram esmagados, o mundo inteiro se chacoalhava. Com as vizinhas correndo desesperadas por cima de seu ninho de amor, Maria Cristina não sabia se as acompanhava na fuga ou se procurava algo para cobrir as partes íntimas. Pablo, atordoado com o caos repentino, não se preocupou em esconder o membro em riste: tentava a todo custo encontrar um jeito de se equilibrar naquela tremedeira e de chegar vivo a uma pequena caverna logo em ali em frente, onde se protegia e se encolhia, em choque, a sua amada.

No instante em que Pablo tentava um salto maior do que a sua fina e minúscula perna, uma fenda colossal se abriu no chão. Por pouco ele não despencou pelo precipício recém criado, como infelizmente o fizeram milhares de plantas e animais menos afortunados. Pendurado por apenas uma das mãos na ponta da falésia, ainda ofegante pelo susto, Pablo assistiu às vizinhas de Maria Cristina caírem no abismo, esperneando em vão no ar, até se tornarem um ponto minúsculo nas trevas e depois desaparecerem, ao ultrapassarem o limite da visão. Percebendo que a força em seus dedos se esvairia em pouco tempo, Pablo fez um esforço imenso para se reerguer até a terra firme. Sôfrego, ainda tentando recuperar o fôlego, não acreditou quando viu Maria Cristina na margem oposta daqueles paredões que agora se distanciavam. A Pangeia estava se dividindo. E eles não estavam do mesmo lado. Boquiabertos, sem tirar os olhos um do outro, eles se despediam sem dizer uma palavra sequer. O mal estava feito. Sabiam que seus destinos haviam mudado. Pablo viveria no Brasil, Maria Cristina em Angola. E eles passariam o resto de seus dias separados por um oceano Atlântico que meia hora antes não estava ali, mas que naquele instante já se impunha caudaloso, intransponível, e que só bilhões de anos depois seria atravessado.

Aqui a história de Pablo poderia enveredar para um parágrafo de lamúrias e sofrimento, porém desde os tempos da Pangeia as leis da natureza são as mesmas: passado o impacto, contados os que sobraram, a vida rapidamente toma rumo. Pablo se ajeitou com uma prima de segundo-grau de Maria Cristina. Não era muito bonita, a pele ainda mais áspera que a da prima, mas era boa moça e logo teve uma ninhada. Em poucos meses, aborrecido com a vida pacata de casado, Pablo decidiu sair para comprar cigarros. Nunca voltou, não se sabe ao certo se encontrou parceira melhor no caminho ou se foi engolido por algum predador, sendo esta segunda possibilidade amplamente aceita como a mais provável. Já Maria Cristina foi muito feliz com um tipo da Namíbia, bem mais alto, mais belo e mais forte do que Pablo, e produziu descendentes da melhor qualidade, hoje entre os fósseis mais valiosos do mercado.

Tudo isto nos leva a crer que o amor não passa de uma conveniência geográfica. E que é muito estranho alguém acreditar que, entre seis bilhões de seres humanos no mundo, exista uma alma gêmea morando exatamente na mesma cidade, passeando pelo mesmo bairro, quem sabe viajando no assento ao seu lado. Nos apaixonamos por quem escolhemos, onde buscamos e pelo tempo que queremos. Não há razão para complicar o que é simples, a não ser que se queira passar a vida esperando a pessoa certa aparecer ou, pior ainda, esperando a pessoa certa voltar. A conclusão é polêmica e não tem base científica. Para o leitor mais cuidadoso, é até fácil redarguir. Afinal, em rápida pesquisa descobre-se que os tiranossauros nunca viveram no Brasil; portanto, não podem ser hectanetos de Pablo. Se o autor se enganou em ponto tão contestável, talvez ainda reste esperança a quem sonha em encontrar a pessoa ideal. A história, desde quando ainda era pré-história, mostra que isto não existe, mas ainda assim não falta quem queira procurar.

2 comentários:

  1. Genial texto, Fabinho! É tão óbvio para quem lê seu texto, mas preciso reforçar: você escreve incrivelmente bem. Referência pra mim.

    Parabéns pelo texto, adorei!

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    1. Um elogio seu tem peso 2, Aline. Vejo que eu, você, outros amigos, estamos todos buscando linguagem própria em nossos textos. Acho que será uma busca sem fim. De todo modo, é sempre uma satisfação agradar a uma cabeça original como a sua. Também bebo na sua fonte, pode ter certeza. Grande beijo

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