Até que se prove o contrário, vigora a teoria de que,
há 200 milhões de anos, ou 540 milhões, não se tem certeza, os continentes eram
um bloco de terra chamado Pangeia. Não que alguém de fato a chamasse assim,
visto que o primeiro ancestral do homem àquele tempo ainda nem pensava em ser
uma ideia possível, muito menos em existir. Porém, é justo pressupor que algum
tipo de vida havia, e que este ser vivo – ao qual, por questões práticas, chamaremos
de Pablo –, assim como qualquer outro ser biologicamente ativo, só pensava em
comer, fosse para logo em seguida se atirar na rede com um palito de dentes no
canto da boca, fosse no sentido, digamos assim, menos literal: o de se
reproduzir.
Pablo era um desses primeiros lagartos de tamanho
modesto e pernas finas que perambulavam Pangeia adentro afoitos por comida e
fêmeas. Não tinha lá grandes ambições além das que envolviam a própria
sobrevivência e a continuação da espécie. Seu cérebro pouco avantajado nunca
seria capaz de imaginar, nem mesmo no seu ponto mais alto de falsa modéstia,
que seus hectanetos, meros milhões de anos depois, teriam as dimensões e a
imponência de prédios de três ou quatro andares, e que seriam tão respeitados,
tão admirados, tão temidos, que entrariam para a história com um nome bastante fidedigno
ao seu status quo na sociedade
cretácea – os tiranossauros.
Pois bem. Fazia uma linda tarde de sol sem previsões
de erupções vulcânicas nas areias de Ipanema, praia que ainda não existia e
que, por estar localizada bem ao centro da Pangeia, assemelhava-se mais ao
interior do Mato Grosso do que ao atual Rio de Janeiro, quando Pablo avistou
Maria Cristina pela primeira vez.
Maria Cristina, para os que ainda não deduziram, era
uma réptil mais ou menos idêntica a Pablo, com as únicas diferenças de que era
capaz de botar ovos e tinha a decência de não arrotar após se fartar com as
entranhas de um inseto ou com outro quitute de igual teor gorduroso. Não era
exatamente uma mulher graciosa. Tinha os olhos um tanto esbugalhados e a pele
enrugada. Mas para Pablo pareceu uma visão de Afrodite, mesmo que ele não
tivesse a menor ideia do que uma deusa grega viria a ser, parecer ou
significar.
É verdade que Maria Cristina não sentiu os mesmos
arrepios de seu pretendente na ocasião do primeiro encontro. Porém, ela andava preocupada,
já não era mais mocinha, e as vizinhas, todas bem arranjadas, começavam a
comentar. Mais por desespero do que por desejo, achou oportuno soltar os
feromônios para aquele forasteiro magricela que, apesar de um tanto inseguro e zero
sex appeal, ao menos serviria para
acertar os ponteiros de seu relógio biológico, cujo alarme já berrava de
vontade de ver a casa cheia de lagartixas engatinhando de fraldas para lá e
para cá. Após uma desastrosa investida de Pablo, que se aproximara lambendo os
lábios e colocando as mãos onde não devia, Maria Cristina respirou fundo e,
determinada a desencalhar e calar a boca das amigas, aceitou reencontrá-lo
naquele mesmo lugar, dali a dez minutos, para o acasalamento.
O sangue gelado de Pablo borbulhava de ansiedade. Não
somente por seu instinto de macho alfa – ou beta, ou gama... deixa pra lá
–, mas também porque seus amigos, um bando de zombadores, como todo grupo
de machos na natureza, faziam correr um burburinho pela Pangeia. Era só tomarem
uns copos a mais para soltarem, às gargalhadas, que as buscas de Pablo pelo pão
de todo dia e por namoradas até então só haviam sido bem sucedidas no primeiro
intento. Ninguém poderia afirmar, mas para todos os que o conheciam de perto,
Pablo ainda era virgem. Suspeita que ele ansiava avidamente por enterrar.
Mas a Pangeia era um continente irônico e, justo no
momento em que Pablo avistou Maria Cristina se aproximar do local combinado, completamente
nua e irresistível, as placas tectônicas da Terra resolveram discutir o relacionamento e
desfazer uma união que já durava muitos bilhões de anos. Foi um desespero só:
pedras rolavam montanha abaixo, árvores estratosféricas caíam feito fruta
madura, animais de todos os portes eram esmagados, o mundo inteiro se
chacoalhava. Com as vizinhas correndo desesperadas por cima de seu ninho de
amor, Maria Cristina não sabia se as acompanhava na fuga ou se procurava algo
para cobrir as partes íntimas. Pablo, atordoado com o caos repentino, não se
preocupou em esconder o membro em riste: tentava a todo custo encontrar um
jeito de se equilibrar naquela tremedeira e de chegar vivo a uma pequena
caverna logo em ali em frente, onde se protegia e se encolhia, em choque, a sua
amada.
No instante em que Pablo tentava um salto maior do que
a sua fina e minúscula perna, uma fenda colossal se abriu no chão. Por pouco
ele não despencou pelo precipício recém criado, como infelizmente o fizeram milhares
de plantas e animais menos afortunados. Pendurado por apenas uma das mãos na
ponta da falésia, ainda ofegante pelo susto, Pablo assistiu às vizinhas de
Maria Cristina caírem no abismo, esperneando em vão no ar, até se tornarem um
ponto minúsculo nas trevas e depois desaparecerem, ao ultrapassarem o limite da
visão. Percebendo que a força em seus dedos se esvairia em pouco tempo, Pablo
fez um esforço imenso para se reerguer até a terra firme. Sôfrego, ainda
tentando recuperar o fôlego, não acreditou quando viu Maria Cristina na margem
oposta daqueles paredões que agora se distanciavam. A Pangeia estava se dividindo.
E eles não estavam do mesmo lado. Boquiabertos, sem tirar os olhos um do outro,
eles se despediam sem dizer uma palavra sequer. O mal estava feito. Sabiam que seus
destinos haviam mudado. Pablo viveria no Brasil, Maria Cristina em Angola. E eles
passariam o resto de seus dias separados por um oceano Atlântico que meia hora antes
não estava ali, mas que naquele instante já se impunha caudaloso, intransponível,
e que só bilhões de anos depois seria atravessado.
Aqui a história de Pablo poderia enveredar para um
parágrafo de lamúrias e sofrimento, porém desde os tempos da Pangeia as leis da
natureza são as mesmas: passado o impacto, contados os que sobraram, a vida
rapidamente toma rumo. Pablo se ajeitou com uma prima de segundo-grau de Maria
Cristina. Não era muito bonita, a pele ainda mais áspera que a da prima, mas
era boa moça e logo teve uma ninhada. Em poucos meses, aborrecido com a vida
pacata de casado, Pablo decidiu sair para comprar cigarros. Nunca voltou, não
se sabe ao certo se encontrou parceira melhor no caminho ou se foi engolido por
algum predador, sendo esta segunda possibilidade amplamente aceita como a mais
provável. Já Maria Cristina foi muito feliz com um tipo da Namíbia, bem mais
alto, mais belo e mais forte do que Pablo, e produziu descendentes da melhor
qualidade, hoje entre os fósseis mais valiosos do mercado.
Tudo isto nos leva a crer que o amor não passa de uma
conveniência geográfica. E que é muito estranho alguém acreditar que, entre
seis bilhões de seres humanos no mundo, exista uma alma gêmea morando
exatamente na mesma cidade, passeando pelo mesmo bairro, quem sabe viajando no
assento ao seu lado. Nos apaixonamos por quem escolhemos, onde buscamos e pelo
tempo que queremos. Não há razão para complicar o que é simples, a não ser que
se queira passar a vida esperando a pessoa certa aparecer ou, pior ainda, esperando
a pessoa certa voltar. A conclusão é polêmica e não tem base científica. Para o
leitor mais cuidadoso, é até fácil redarguir. Afinal, em rápida pesquisa
descobre-se que os tiranossauros nunca viveram no Brasil; portanto, não podem
ser hectanetos de Pablo. Se o autor se enganou em ponto tão contestável, talvez
ainda reste esperança a quem sonha em encontrar a pessoa ideal. A história, desde quando ainda era pré-história,
mostra que isto não existe, mas ainda assim não falta quem queira procurar.