As traças da minha casa são muito bem alimentadas. As mais sofisticadas deliciam-se sem culpa com dois ternos, um da safra de 2002, outro da safra de 2006, ambos com denominação de origem comprovada, envelhecidos em armário de compensado há pelo menos cinco anos. Outro grupo, mais up-to-date, prefere explorar a enorme gama de fibras tecnológicas e lançar tendências gastronômicas na prateleira de roupas esportivas, intocada por mim há no mínimo três anos. Por fim, as traças menos preocupadas com a forma física se fartam diariamente com uma ampla oferta de casacos e moletons completamente inúteis para o clima da cidade em que vivo. Incautas, glutonas e irracionais, tais quais seres humanos em bufê a preço fixo, elas ignoram o cheiro estranho da comida e entopem as coronárias como se não houvesse amanhã, servindo-se desmedidamente dos quitutes oferecidos no andar de cima do meu guarda-roupa. A gula é tanta, que outro dia encontrei uns furos numa samba-canção. Consigo imaginar a pobre coitada comentando. "Estou passando mal. Acho que tinha alguma coisa estragada naquela cueca."
A verdade é que, se você não
for um monge franciscano e não tiver feito votos de pobreza, sem dúvida você
tem coisas demais. E é também inquestionável que de tempos em tempos um pouco
de descoisificação se faz necessária
para qualquer pessoa, para usar um neologismo cunhado pelo irmão de uma amiga,
no momento em que se livrava de CDs, DVDs e outros objetos pré-históricos que só
servem para abrigar colônias de ácaros em nossas casas.
Uma das impressões mais
marcantes que tive na viagem que fiz recentemente à Escandinávia foram o
minimalismo e o pragmatismo da arquitetura de lá. Todas as estruturas parecem
se comunicar de alguma maneira. Todos os espaços parecem buscar o menor
denominador comum entre forma e função. Os desenhos dos prédios e produtos
carregam uma competição implícita, em que designers, arquitetos e engenheiros
disputam quem consegue aliar o mínimo de matéria-prima ao máximo de utilidade.
Não há detalhes alegóricos. Não há desperdício visual. Invariavelmente bonitos,
os espaços dão uma equivocada sensação de vazio. Na verdade, se afinarmos o
olhar, percebemos que tudo está apenas em seu devido lugar.
São países que se descoisificaram na origem, na forma de
pensar. Em uma conversa com uma amiga norueguesa, descobri um fato interessante
daquele povo. Ela me explicou que, da mesma maneira que a síntese do brasileiro
seria o “homem cordial”, criado por Sérgio Buarque de Hollanda, o símbolo do
norueguês seria o “homem simples”. Em poucas palavras, a característica
essencial dos indivíduos nascidos na Noruega seria ter uma predileção natural
por uma vida sem excessos, alimentada pelo peixe pescado no dia, pautada pela discrição
nas roupas, na moradia, na forma de agir. Pelo o que eu pude entender, o
norueguês é simples meramente por repudiar a ostentação, e não por falta de
formação educacional, como seria o significado mais usual para simplicidade no
Brasil.
Talvez esta seja uma das
fontes para a escandinava parcimônia de pormenores em tudo, desde a estética das
construções nas cidades, até o design de objetos do dia a dia, como a torneira
do banheiro do hotel. Seguramente influenciado pelos ares nórdicos, voltei ao
meu país com certa claustrofobia por causa da minha exagerada acumulação de
miudezas, não apenas de pertences materiais, como as inúmeras peças de roupa
que não uso, mas também de coisas abstratas, como os contatos no celular para os
quais eu nunca liguei, os sites na internet que só me fazem perder tempo,
as anotações em pedaços de papel que jamais consultarei. Assim como um sofá às
vezes parece grande demais para uma sala, não raro tenho a sensação de que há
algo obstruindo meu caminho, e acabo fazendo uma promessa interna de começar um
processo de reorganização geral, a começar pela gaveta de meias, assim que eu
tiver um final de semana mais tranquilo, sem nada que possa minar minha determinação.
Para felicidade das traças
da minha casa, o tal fim de semana provavelmente nunca chegará. Dominado pela autocomiseração,
vou deixando a promessa para o dia seguinte, para o mês que vem, para quando
Deus dará. É que nos últimos tempos não tenho sido o homem cordial, inventado
pelo pai do Chico. Nem o homem simples, que deve passar um frio danado pescando
um bacalhau nos rincões da Noruega. Estou mais para homem franco. Talvez esta
seja a melhor definição. Porque é mais fácil as minhas traças morrerem de ataque cardíaco por excesso
de comida, do que o meu armário ver alguma arrumação.