É impressionante a frequência com que nós
associamos a criação de uma criança com deficiência com um mundo desconhecido,
estrangeiro. Estou me preparando para sair de férias e, refletindo sobre a
melhor maneira de me despedir deste blog por algumas semanas, notei a recorrência do uso da
metáfora da viagem para um mundo diferente ao se falar de um filho com
necessidades especiais. O sentimento de estar constantemente perdido, a
dificuldade com a nova língua (novas palavras, novos termos), a busca desesperada
por mapas e informações: sensações familiares, tanto para quem se aventurou em terras
distantes, quando para quem, ao descobrir que seu filho tem alguma deficiência, as
sentiu em seu coração.
Nos últimos 15 meses, minha mulher e eu nos
mudamos para um país absolutamente remoto. Deserto como o meio do Canadá, frio
como os rincões da Rússia: um lugar inóspito, especialmente para um casal que havia
enfrentado pouca dificuldade na vida. Saímos em busca de ajuda por todos os
lados, de mãos dadas, escorregando nas pedras molhadas, muitas vezes tremendo –
de medo –, pois a missão de cuidar de um filho absolutamente diferente nos
havia sido entregue.
Por sorte, encontramos muita ajuda. De alguns
profissionais de saúde, de algumas outras famílias que também haviam sido
jogadas naquele lugarejo como nós, mas o apoio mais significativo veio das
pessoas que ficaram em casa: nossas famílias e nossos amigos. Pessoas que estão
longe, no sentido de não terem passado pelos desafios que estamos enfrentando,
mas que, por outro lado, estão absolutamente perto, no sentido de nos ajudarem a
lapidar nossos caminhos.
A exposição franca da condição do Antonio –
para a Ana e para mim, não havia outro jeito de lidar com a situação – gerou
uma rede de proteção, de informação e principalmente de afeto em nossa volta,
uma rede que está tomando proporções inimagináveis. Onde vamos com o Antonio,
sentimo-nos acolhidos e compreendidos, sem os coitadismos e pieguices que
muitas vezes dificultam o enfrentamento saudável dos problemas que surgem no
dia a dia de um filho com deficiência.
A chegada do Antonio nos levou para uma terra
estranha, sim. Mas agora, o conforto da adaptação já começa a dar as caras. A
vida normal – tão sem graça, mas tão aconchegante – já faz parte de alguns dias
das nossas semanas. E agora, que estou me preparando para ficar algum tempo em
terras estrangeiras, para viajar no sentido literal, sem meu filho e sem minha
mulher, o medo que surge em mim é outro: a saudade que vou sentir desta vida
que aprendi a amar.
OBS: Por causa das minhas férias, este blog
ficará sem atualizações até o dia 2 de julho. Irei para alguns lugares
esquisitos por aí. E espero voltar cheio de histórias para contar.
Para compensar a ausência, deixo aqui dois
textos bem famosos, escritos por pais de crianças com paralisia cerebral. Uma mostra de que a ligação de deficiências com países longíquos é bem comum. E
uma excelente forma de imaginar o que é viver esta experiência.
Abraço a todos, até dia 2 de julho.
Fábio Ludwig
Bem-vindo à Holanda
Emily Perl Kinsley
Frequentemente sou solicitada a descrever a experiência de criar um
filho portador de deficiência, para tentar ajudar as pessoas que nunca
compartilharam dessa experiência única a entender, a imaginar como deve ser. É
mais ou menos assim.
Quando você vai ter um bebê, é como planejar uma fabulosa viagem de
férias – para a Itália. Você compra uma penca de guias de viagem e faz planos
maravilhosos. O Coliseu. Davi, de Michelangelo. As gôndolas de Veneza. Você
pode aprender algumas frases convenientes em italiano. É tudo muito empolgante.
Após meses de ansiosa expectativa, finalmente chega o dia. Você arruma
suas malas e vai embora. Várias horas depois, o avião aterrissa. A comissária
de bordo chega e diz: “Bem-vindos à Holanda”.
“Holanda?!? Você diz, “Como assim, Holanda? Eu escolhi a Itália. Toda a
minha vida eu tenho sonhado em ir para a Itália.”
Mas houve uma mudança no plano de voo. Eles aterrissaram na Holanda e é
lá que você deve ficar.
O mais importante é que eles não te levaram para um lugar horrível, repulsivo,
imundo, cheio de pestilências, inanição e doenças. É apenas um lugar diferente.
Então você deve sair e comprar novos guias de viagem. E você deve
aprender todo um novo idioma. E você vai conhecer todo um novo grupo de pessoas
que você nunca teria conhecido.
É apenas um lugar diferente. Tem um ritmo mais lento do que a Itália, é
menos vistoso que a Itália. Mas depois de você estar lá por um tempo e respirar
fundo, você olha ao redor e começa a perceber que a Holanda tem moinhos de
vento, a Holanda tem tulipas, a Holanda tem até Rembrandts.
Mas todo mundo que você conhece está ocupado indo e voltando da Itália,
e todos se gabam de quão maravilhosos foram os momentos que eles tiveram lá. E
toda sua vida você vai dizer “Sim, era para onde eu deveria ter ido. É o que eu
tinha planejado.”
E a dor que isso causa não irá embora nunca, jamais, porque a perda
desse sonho é uma perda extremamente significativa.
No entanto, se você passar sua vida de luto pelo fato de não ter chegado
à Itália, você nunca estará livre para aproveitar as coisas muito especiais e
absolutamente fascinantes da Holanda.
Meu pequeno búlgaro
Diogo Mainardi
"Eu achava que as palavras
eram inofensivas. Para mim, o
politicamente correto era folclore. Já não penso assim"
Diagnosticaram uma paralisia cerebral em meu filho de 7 meses. Vista de
fora, uma notícia do gênero pode parecer desesperadora. De dentro, é muito
diferente. Foi como se me tivessem dito que meu filho era búlgaro. Ou seja,
nenhum desespero, só estupor. Se eu descobrisse que meu filho era búlgaro,
minha primeira atitude seria consultar um almanaque em busca de informações
sobre a Bulgária: produto interno bruto, principais rios, riquezas minerais.
Depois tentaria aprender seus costumes e sua língua, a fim de poder me
comunicar com ele. No caso da paralisia cerebral, fiz a mesma coisa. Passei
catorze horas por dia diante do computador, fuçando o assunto na internet.
Memorizei nomes. Armazenei dados. Conferi estatísticas. Pelo que entendi, a
paralisia cerebral confunde os sinais que o cérebro envia aos músculos. Isso
faz com que a criança tenha dificuldades para coordenar os movimentos. Meu
filho tem uma leve paralisia cerebral de tipo espástico. Os músculos que
deveriam alongar-se contraem-se. Algumas crianças ficam completamente
paralisadas. Outras conseguem recuperar a funcionalidade. É incurável. Mas há
maneiras de ajudar a criança a conquistar certa autonomia, por meio de
cirurgias, remédios ou fisioterapia.
Um dia meu filho talvez reclame desta coluna, dizendo que tornei público
seu problema. O fato é que a paralisia cerebral é pública. No sentido de que é
impossível escondê-la. Na maioria das vezes, acarreta algum tipo de deficiência
física, fazendo com que a criança seja marginalizada, estigmatizada. Eu sempre
pertenci a maiorias. Pela primeira vez, faço parte de uma minoria. É uma
mudança e tanto. Como membro da maioria, eu podia me vangloriar de meu suposto
individualismo. Agora a brincadeira acabou. Assim que soube da paralisia
cerebral de meu filho, busquei apoio da comunidade, entrando em tudo que é
fórum da internet para ouvir o que outros pais em minha condição tinham a dizer
sobre os efeitos colaterais do Baclofen ou sobre a eficácia de tratamentos
menos ortodoxos, como a roupa de elásticos dos astronautas russos usada numa
clínica polonesa.
A paralisia cerebral de meu filho também me fez compreender o peso das
palavras. Eu achava que as palavras eram inofensivas, que não precisavam de
explicações, de intermediações. Para mim, o politicamente correto era puro
folclore americano. Já não penso assim. Paralisia cerebral é um termo que dá
medo. É associado, por exemplo, ao retardamento mental. Eu não teria problemas
se meu filho fosse retardado mental. Minha opinião sobre a inteligência humana
é tão baixa que não vejo muita diferença entre uma pessoa e outra. Só que meu
filho não é retardado. E acho que não iria gostar de ser tratado como tal.
Considero-me um escritor cômico. Nada mais cômico, para mim, do que uma
esperança frustrada. Esperança frustrada no progresso social, na força do amor,
nas descobertas da ciência. Sempre trabalhei com essa ótica anti-iluminista.
Agora cultivo a patética esperança iluminista de que nos próximos anos a
ciência invente algum remédio capaz de facilitar a vida de meu filho. E, se não
inventar, paciência: passei a acreditar na força do amor. Amor por um pequeno
búlgaro.