Pintura de Iberê Camargo |
Há três dias o Antonio só ri. Tivemos uma semana difícil,
escapamos por pouco de mais uma internação, com febres dantescas e com a dupla
infalível para combater tudo o que é infecção mais ou menos indeterminada:
antibiótico e injeção. Mesmo assim, desde a sexta passada, o Antonio não tira o
sorriso do rosto. Toca a abertura da novela, ele ri. Entra debaixo do chuveiro,
ele ri. Até de olhos fechados, naquele estado embriagado de quem está mais pra
lá do que pra cá, se fizermos algum barulho engraçado, ele sorri.
É difícil precisar quanto tempo se perde da vida ao ter um
filho. Em todos os casos é muito. Caso contrário, não haveria tanta gente se
lamentando ao descobrir uma gravidez não planejada. Mais do que as previsíveis
noites em claro, perde-se, em maior ou menor grau, as viagens a dois, os
encontros com os amigos marcados em cima da hora, o tempo disponível para ler,
para andar de bicicleta, para fazer uma pós-graduação. Aprendemos a comer
comida fria, depois de todos os parentes, sem relação direta com a hora em que
o corpo sente fome. Criamos a capacidade de cochilar em qualquer oportunidade e
nas mais improváveis posições. Nosso próprio bem-estar cai para segundo lugar
nas prioridades. Antes, é preciso colocar o rebento para dormir.
Até aqui nada de novo. Quando um casal decide ter uma
criança, já tem uma boa noção de praticamente tudo o que está por vir. Porém,
quando esta criança vem com uma síndrome, com alguma complicação, é como se
queimassem o mapa. Como se quebrassem a bússola. Não se sabe direito por onde
começar, nem para onde ir. Simples tarefas instintivas como a capacidade de respirar
e de comer perdem a garantia. É como comprar um carro novo, girar a chave e não
ter certeza se o motor vai ligar. E ainda ser alertado de que, em alguns casos,
ele pode explodir.
É difícil precisar quanto tempo se perde da vida ao ter um
filho especial. Em todos os casos é muito. Caso contrário, não haveria tanta
gente se lamentando ao descobrir uma síndrome inesperada. Mais do que as
previsíveis noites em claro, perde-se, em maior ou menor grau, a chance de ver
seu bebê começar a andar quando completa um ano, perdem-se encontros com a
família e com os amigos para cuidar de problemas de saúde, perde-se a
serenidade ao acompanhar o desenvolvimento do seu filho, com uma amarga dose de
decepção a cada marco que começa a atrasar. Aprendemos a dar valor para
pequenas conquistas – na verdade gigantescas – como a habilidade de sugar, engolir,
mastigar. Criamos a capacidade de dormir com os ouvidos abertos, alertas para
qualquer ruído, ou falta dele. Nosso próprio bem-estar cai para décimo segundo
lugar nas prioridades. Antes, é preciso medir a febre, tentar dar dois ou três
remédios sem que seu filho cuspa, tentar dar um pouco de comida sem que ele
engasgue e tussa, rezar para que não vomite, limpar tudo quando vomita, tirar o
muco da garganta, ouvir a respiração, fazer nebulização e, dependendo do
diagnóstico daquela semana, ainda ter dúvidas se o seu rebento conseguirá
dormir.
Por buscar encarar as dificuldades do Antonio de forma
positiva e por de fato amá-lo incondicionalmente, talvez eu transmita a
sensação de que está sempre tudo bem. Talvez eu passe a impressão de que,
apesar de não ter a menor ideia do que pode acontecer com o meu filho, está tudo
sob controle. Por fazer questão de iluminar as conquistas dele em vez dos
obstáculos, e por acreditar que ele surpreenderá as pessoas – especialmente a
mim – em todos os sentidos, talvez meus relatos não sejam tão transparentes
assim. Talvez não sejam absolutamente fieis à realidade dos fatos.
Infelizmente, apesar de desejar ardentemente o contrário, o
amor não tem poder de cura. Pelo menos quando seu filho tem um pico de febre no
meio da madrugada. Ou quando sufoca até ficar roxo. Em momentos assim, não adianta
você simplesmente amá-lo fervorosamente. Não adianta simplesmente esperar que
tudo dê certo. Quando a crise é grave, calma e otimismo são até perigosos.
Amenizam o senso de urgência. Atrasam a ação. Quando você finalmente desiste de
se iludir e toma alguma atitude, pode ser tarde demais.
Há semanas me incomoda o enganoso clima de equilíbrio e
tranquilidade que meus textos evocam. Muitas vezes tenho falado sobre felicidade
e outras introspecções positivas, mas não raro estou escrevendo de dentro de um
quarto do hospital, assistindo meu filho passar por exames invasivos,
procedimentos traumáticos, dolorosos, sem contar toda a angústia e desconforto
de uma internação. Senti a necessidade de compartilhar que há um lado muito
pesado nesta história toda. Precisava colocar um pouco de tinta escura neste
quadro que as minhas palavras desenham. Senão ele não seria nem mesmo uma
representação do real. Seria pura encenação. Um faz de conta sobre a vida com
uma criança especial. Uma criança absolutamente encantadora, sim, mas com
questões de saúde e comprometimentos cognitivos preocupantes, que criam um
dia a dia nada fácil e um futuro indecifrável.
Entretanto, apesar do meu lado aflito ter tomado as rédeas
nos últimos dias, apesar de eu ter sucumbido por alguns instantes à minha compreensível
vontade de me transformar em vítima – vontade que todos os pais de crianças com
necessidades especiais enfrentam, mas muitos, como eu, procuram rejeitar –, faz
três dias que o Antonio só ri. Pelo visto, a dor foi embora. Pelo jeito, os
incômodos cessaram. E a cada oportunidade que encontra, ele abre aquela risada
com os olhinhos fechados, exibindo os oito dentes, lindos, mais separados do que
juntos. Garanto que o meu lado carrancudo ainda está no comando. Tenho
andado com o humor nas trevas e um vinco de preocupação na fronte. Posso assegurar
que as minhas queixas e lamentações estão tentando resistir. Mas, felizmente,
acho que não vão conseguir.