Quando se sabe fazer um prato muito bom, sou a
favor do direito de não dividir a receita. Anos de erros e acertos não podem
simplesmente ser ignorados. Horas de pesquisa sobre o ponto certo do creme, a
quantidade exata de açúcar e a temperatura ideal do forno não devem ser
entregues assim, como se não tivessem dado um trabalhão danado. Receitas
excepcionais nasceram para ser secretas. Se alguém insistir, você pode até
abrir uma exceção. Mas lembre de sempre passar algum ingrediente errado.
A cozinha é um bom exemplo de como damos valor
ao nosso poder criador. Ninguém se gaba de fazer o trivial. Cozinheiro algum, seja
profissional, seja amador, enche o peito para dizer que sabe fritar bife. A
excelência está em transformar caldo em consomê, torta em suflê, pato em magret,
cozido em cassoulet, e, se não der tempo de fazer a sobremesa, sirva picolé de
limão, mas dê a volta por cima chamando de sorbet.
Há também os que se dedicam a explorar técnicas
milenares à exaustão. Porém, quando alguém de renome se presta a preparar uma
receita ordinária, é sempre para entrar na categoria melhores do mundo. É aquele chef
que se banqueteia em lucros vendendo, supostamente, o melhor hambúrguer do
mundo. É aquela franquia que pretensiosamente se auto-intitula inventora do
melhor bolo de chocolate do mundo. E é aquela pessoa que existe em toda e
qualquer família – geralmente uma mãe, uma tia ou uma avó –, que nasceu
com as mãos abençoadas e que, mesmo sem medir nenhum ingrediente, faz o melhor
arroz, o melhor feijão ou o melhor bolinho de chuva do mundo.
A vida seria simples se esta elevação dos
padrões se restringisse apenas ao sabor do que colocamos na boca. A disputa de
qual é o melhor pão-de-queijo é bastante inocente e faz a alegria de muita
gente. Porém, vivemos em um tempo em que a alimentação virou a ciência da culpa.
Carboidrato engorda, carne dá câncer, açúcar faz mal. Daqui a pouco, a feijoada
do sábado será crime. Comer picanha com gordura terá parágrafo específico no
código penal.
A droga do futuro não é a cocaína, não é o
crack: é o bacon. Consigo visualizar
os açougueiros com o cutelo preso à cintura, feito traficantes, comercializando
os pequenos pacotinhos a preço de ouro. Os clientes – ou melhor, os dependentes
– farão fila na porta do açougue, com aquele aspecto esfomeado, apesar de
rechonchudos, suplicando por mais uma dose de pancetta, se possível na veia. Serão, então, escoltados para os
fundos, onde vacas inteiras estarão penduradas em ganchos, e onde o chefe da
quadrilha estará esperando por suas vítimas, em meio a paredes decoradas com manchas
de sangue, que podem ser tanto dos animais, quanto de usuários endividados.
Devaneios à parte, foi neste cenário de certos e
errados nutricionais que vi minha mulher e eu nos descabelando por causa da
dieta do nosso filho. Primeiro, a partir de um ponto da gestação, o Antonio
deixou de ganhar peso suficiente, por mais que a Ana se empanturrasse de
proteínas e ingerisse tudo o que o médico recomendasse. Depois, ao nascer, ele não
pegou o peito de jeito algum e acabou aproveitando apenas por algumas semanas o
melhor alimento do mundo: o leite da mãe (que havia de sobra). Pouco depois de
começar na mamadeira, que adorava, foi diagnosticado com uma alergia à proteína
do leite, o que nos forçou a fazer uma adaptação completa na alimentação dele,
para que continuasse recebendo todos os nutrientes de que precisa.
Nenhuma das receitas que tranquilizam pais e
mães funcionaram com a gente. Por dois meses, nosso filho só mamou por canudos
grudados em nosso dedo. As chupetas que hoje o fazem dormir, antes eram
completamente rejeitadas. Nem a funchicória, alívio certo para cólicas há
décadas, fez efeito em nosso bebê.
Com o tempo fomos encontrando o caminho.
Adiantamos a entrada das frutas. Introduzimos carne de porco muito antes do que
a cultura brasileira está habituada. Fomos criando um cardápio específico,
porém completo. Conseguimos, do nosso jeito, fazer nosso filho engordar
satisfatoriamente e espichar impressionantemente. Hoje, ao contrário das expectativas,
o Antonio é uma criança comprida. Ainda não deu nem sinal do possível atraso de
crescimento esperado para bebês com síndromes.
Assim como os chefs de cozinha, pais e mães – a Ana e eu inclusive – chegam a
perder o sono na tentativa de criar a obra perfeita. Queremos o filho mais
esperto, mais forte, mais saudável. Qualquer medição fora da curva é sinônimo
de desespero. Perguntamos a meio mundo o que fazer.
Com exceção do peso e da altura, todos os marcos
do Antonio estão completamente fora da média. Não temos nota 10 em nenhum
teste, não temos 100% em nenhum exame. No entanto, apesar das limitações e dos atrasos,
nosso filho dá inúmeros sinais de que está bem. Ele está sempre sorrindo,
apresenta ótimo apetite, dorme tranquilo a maioria das noites. Mesmo sem poder
contar com as referências dos livros, sabemos que estamos acertando na criação
dele. Mesmo sem poder comprovar nossas teorias, percebemos diariamente que ele
está aprendendo, que ele está respondendo: vemos que ele está se desenvolvendo.
Algumas das melhores invenções culinárias são
receitas que não deram certo. O chantilly é um leite que não suportou o calor e
o movimento das longas viagens pelo meio da França. O petit gateau é
um bolinho que não terminou de assar. Roquefort e gorgonzola são produtos que estão
literalmente infestados de fungos. Ainda bem que alguém teve coragem de comer.
Se minha mulher e eu fôssemos criar nosso filho
pela cartilha, estaríamos perdidos. Em vez disso, ele está nos obrigando a
criar a nossa própria receita, a inventar novos ingredientes. Não estamos mais tão
preocupados com o resultado. Tudo que é feito com amor, na cozinha ou na vida,
costuma dar certo. E é assim que vamos fazer o Antonio crescer.
Ih, deu errado. |