segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

Receita furada


Quando se sabe fazer um prato muito bom, sou a favor do direito de não dividir a receita. Anos de erros e acertos não podem simplesmente ser ignorados. Horas de pesquisa sobre o ponto certo do creme, a quantidade exata de açúcar e a temperatura ideal do forno não devem ser entregues assim, como se não tivessem dado um trabalhão danado. Receitas excepcionais nasceram para ser secretas. Se alguém insistir, você pode até abrir uma exceção. Mas lembre de sempre passar algum ingrediente errado.

A cozinha é um bom exemplo de como damos valor ao nosso poder criador. Ninguém se gaba de fazer o trivial. Cozinheiro algum, seja profissional, seja amador, enche o peito para dizer que sabe fritar bife. A excelência está em transformar caldo em consomê, torta em suflê, pato em magret, cozido em cassoulet, e, se não der tempo de fazer a sobremesa, sirva picolé de limão, mas dê a volta por cima chamando de sorbet.

Há também os que se dedicam a explorar técnicas milenares à exaustão. Porém, quando alguém de renome se presta a preparar uma receita ordinária, é sempre para entrar na categoria melhores do mundo. É aquele chef que se banqueteia em lucros vendendo, supostamente, o melhor hambúrguer do mundo. É aquela franquia que pretensiosamente se auto-intitula inventora do melhor bolo de chocolate do mundo. E é aquela pessoa que existe em toda e qualquer família – geralmente uma mãe, uma tia ou uma avó –, que nasceu com as mãos abençoadas e que, mesmo sem medir nenhum ingrediente, faz o melhor arroz, o melhor feijão ou o melhor bolinho de chuva do mundo.

A vida seria simples se esta elevação dos padrões se restringisse apenas ao sabor do que colocamos na boca. A disputa de qual é o melhor pão-de-queijo é bastante inocente e faz a alegria de muita gente. Porém, vivemos em um tempo em que a alimentação virou a ciência da culpa. Carboidrato engorda, carne dá câncer, açúcar faz mal. Daqui a pouco, a feijoada do sábado será crime. Comer picanha com gordura terá parágrafo específico no código penal.

A droga do futuro não é a cocaína, não é o crack: é o bacon. Consigo visualizar os açougueiros com o cutelo preso à cintura, feito traficantes, comercializando os pequenos pacotinhos a preço de ouro. Os clientes – ou melhor, os dependentes – farão fila na porta do açougue, com aquele aspecto esfomeado, apesar de rechonchudos, suplicando por mais uma dose de pancetta, se possível na veia. Serão, então, escoltados para os fundos, onde vacas inteiras estarão penduradas em ganchos, e onde o chefe da quadrilha estará esperando por suas vítimas, em meio a paredes decoradas com manchas de sangue, que podem ser tanto dos animais, quanto de usuários endividados.

Devaneios à parte, foi neste cenário de certos e errados nutricionais que vi minha mulher e eu nos descabelando por causa da dieta do nosso filho. Primeiro, a partir de um ponto da gestação, o Antonio deixou de ganhar peso suficiente, por mais que a Ana se empanturrasse de proteínas e ingerisse tudo o que o médico recomendasse. Depois, ao nascer, ele não pegou o peito de jeito algum e acabou aproveitando apenas por algumas semanas o melhor alimento do mundo: o leite da mãe (que havia de sobra). Pouco depois de começar na mamadeira, que adorava, foi diagnosticado com uma alergia à proteína do leite, o que nos forçou a fazer uma adaptação completa na alimentação dele, para que continuasse recebendo todos os nutrientes de que precisa.

Nenhuma das receitas que tranquilizam pais e mães funcionaram com a gente. Por dois meses, nosso filho só mamou por canudos grudados em nosso dedo. As chupetas que hoje o fazem dormir, antes eram completamente rejeitadas. Nem a funchicória, alívio certo para cólicas há décadas, fez efeito em nosso bebê.

Com o tempo fomos encontrando o caminho. Adiantamos a entrada das frutas. Introduzimos carne de porco muito antes do que a cultura brasileira está habituada. Fomos criando um cardápio específico, porém completo. Conseguimos, do nosso jeito, fazer nosso filho engordar satisfatoriamente e espichar impressionantemente. Hoje, ao contrário das expectativas, o Antonio é uma criança comprida. Ainda não deu nem sinal do possível atraso de crescimento esperado para bebês com síndromes.

Assim como os chefs de cozinha, pais e mães – a Ana e eu inclusive – chegam a perder o sono na tentativa de criar a obra perfeita. Queremos o filho mais esperto, mais forte, mais saudável. Qualquer medição fora da curva é sinônimo de desespero. Perguntamos a meio mundo o que fazer.

Com exceção do peso e da altura, todos os marcos do Antonio estão completamente fora da média. Não temos nota 10 em nenhum teste, não temos 100% em nenhum exame. No entanto, apesar das limitações e dos atrasos, nosso filho dá inúmeros sinais de que está bem. Ele está sempre sorrindo, apresenta ótimo apetite, dorme tranquilo a maioria das noites. Mesmo sem poder contar com as referências dos livros, sabemos que estamos acertando na criação dele. Mesmo sem poder comprovar nossas teorias, percebemos diariamente que ele está aprendendo, que ele está respondendo: vemos que ele está se desenvolvendo.

Algumas das melhores invenções culinárias são receitas que não deram certo. O chantilly é um leite que não suportou o calor e o movimento das longas viagens pelo meio da França. O petit gateau é um bolinho que não terminou de assar. Roquefort e gorgonzola são produtos que estão literalmente infestados de fungos. Ainda bem que alguém teve coragem de comer.

Se minha mulher e eu fôssemos criar nosso filho pela cartilha, estaríamos perdidos. Em vez disso, ele está nos obrigando a criar a nossa própria receita, a inventar novos ingredientes. Não estamos mais tão preocupados com o resultado. Tudo que é feito com amor, na cozinha ou na vida, costuma dar certo. E é assim que vamos fazer o Antonio crescer.

Ih, deu errado.


segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

Vendo bicicleta



Estou vendendo um violão que não uso há dez anos, uma mesa que definitivamente não cabe na minha sala e uma bicicleta que só foi usada no primeiro mês.

Se alguém se interessar, também não me importo em trocar por alguns punhados de moedas umas três garrafas de uísque fechadas, uma máquina fotográfica antiga, dois tocadores de mp3, uma coleção inteira de CDs e DVDs, fones de ouvido, um par de binóculos, um bom número de peças de roupa, alguns brinquedos, copos, objetos de decoração e mais uma imensa lista de pertences que, no dia-a-dia, nem percebo que existem.

A capacidade humana de juntar quinquilharia supera todas as previsões. Algumas gavetas mantêm um verdadeiro ecossistema, onde convivem pacificamente pilhas fracas, canetas secas, tampas de garrafa, entre outros itens de primeira necessidade que, segundo a lei de Murphy, basta jogar fora num dia para no outro precisar. Na dúvida­ – que não passa de uma máscara para a invencível preguiça de organizar as tralhas –, melhor guardar.

Antes que os colecionadores de tranqueira me joguem uma das suas relíquias na cabeça, é importante dizer que aceito que um pouco de bagunça é, de certa forma, a pulsação da casa. É o sinal de que há vida naquele lar. Sou completamente a favor do trabalho de arquitetos e decoradores, mas confesso que sinto certa tristeza quando entro em uma casa onde tudo é tão planejado, tudo é tão limpo visualmente, que parece mostruário de loja. É preciso livros velhos – e lidos – na estante. É preciso um móvel que não combina com nada, mas que foi herança da sua avó e do seu avô. Por mais organizada que seja, toda residência precisa de algumas peças que podem parecer fora de moda ou inúteis, mas que exercem a função mais importante de todas: contar a história das pessoas que vivem naquele lugar.

Entretanto, quando desmedido, o entulho de memórias atrapalha mais do que ajuda. Não só nos armários de casa, mas também dentro da nossa mente. Assim como é importante de vez em quando fazer uma limpa nas gavetas, também é fundamental de tempos em tempos fazer uma faxina na cabeça e decidir quais lembranças realmente vale a pena preservar.

Às vezes passamos anos acreditando em uma afirmação falsa. Às vezes deixamos alguém nos convencer de algo e, só depois de muito tempo perdido, percebemos não deveríamos ter escutado. Ideias – especialmente as dos outros sobre nós – se incrustam no cérebro como poeira pelos cantos da casa. Ou você se livra delas, ou, com o passar do tempo, mesmo a mais absurda das afirmações pode ser confundida com a verdade e se transformar em realidade. Torna-se impossível de limpar.

Recentemente foi realizada uma pesquisa em uma escola cujas turmas são divididas pelo desempenho dos estudantes. Os alunos com as notas mais altas ficam na turma A, os alunos com as notas boas ficam na turma B, e assim por diante, até a turma D, em que estudam os jovens com notas não satisfatórias. Em um ano letivo qualquer, os cientistas fizeram um experimento cruel: disseram a um grupo de estudantes com desempenho excelente que eles haviam se classificado apenas para a turma D. Da mesma forma, informaram a alguns alunos com notas ruins que eles tinham pontuação suficiente para estudarem na turma A.

O resultado foi impressionante. Em poucos meses, os bons alunos que foram colocados na turma D estavam tirando péssimas notas, começaram a ter problemas de autoestima e alguns até cogitavam largar os estudos. Já os alunos mais fracos, mas que acreditavam fazer parte da turma A, tiveram um salto no seu desempenho e passaram a apresentar notas comparáveis às dos melhores estudantes do colégio. A pesquisa comprovou uma teoria conhecida intuitivamente por todos nós, mas para a qual raramente damos o crédito devido: somos somente o que acreditamos ser.

Quando se tem um filho especial, a primeira preocupação que vem à mente é se ele terá condições de sobreviver. As pessoas poucas vezes se dão conta que, para efeitos práticos, a palavra síndrome significa que há um conjunto de características diferentes no corpo, e que a maioria delas, muito mais do que causar alterações estéticas, também tem alguma repercussão funcional. Ter um bebê especial é ter que se preocupar – mais do que o usual – se o pulmão vai respirar, se os rins vão filtrar, se o coração vai bater. Somente em um próximo momento, quando as questões vitais de saúde estão controladas, começa um questionamento cuja resposta é bem mais complexa: como será que o meu filho irá viver?

A raridade da síndrome do Antonio é ao mesmo tempo uma informação boa e ruim. No lado negativo, há o pouco conhecimento da medicina a esse respeito. Existem no mundo pouco mais de 100 casos parecidos nos quais podemos nos espelhar. Por outro lado, se não podemos ter esperança de tudo, podemos ao menos sonhar alto. Ninguém sabe ao certo até onde irá o desenvolvimento do Antonio. Não há limites definidos. Há apenas referências ainda possíveis de superar.

Porém, é impossível prosperar sem metas. Então, para amenizar a ansiedade e contribuir consistentemente para o progresso do Antonio, minha mulher e eu temos perguntado aos médicos e pais de crianças especiais o que podemos esperar. Onde podemos mirar nossos esforços?

Temos ideia, por exemplo, de que muitas crianças em condições similares conseguem andar, e o fazem em algum ponto entre os dois e os seis anos de idade. Sabemos que há casos em que as crianças pareciam não ouvir direito, mas depois, com a maturidade neurológica, passaram a escutar melhor. Temos consciência também de que muitas crianças não falam nada, que a maioria usa algumas poucas palavras e que um número reduzido chega a formular frases para se comunicar.

Cada caso é um caso. E sempre há exceções. No entanto, por mais que eu tente não olhar essas informações como sentenças, elas sempre estão como pano de fundo na minha mente. Faço um esforço imenso para não transformar as experiências alheias em limites ou expectativas, mas é um exercício difícil. E admito que a possibilidade do Antonio não falar é uma das projeções que mais me amedrontam. É um dos futuros para os quais estou tendo dificuldades de me preparar.

Porém, dia desses recebi um vídeo de uma mãe canadense, que havia filmado sua filha de seis anos, que tem deleção no cromossomo 6, como o Antonio, porém estava falando com muito mais desenvoltura do que eu poderia imaginar. Como se isso não fosse emoção suficiente, a menina estava lendo – lendo! – um livro infantil. Ela avançava com dificuldade e parecia já ter decorado algumas partes, mas estava acompanhando cada sílaba com os dedos e travava em uma palavra ou outra. Ou seja: ela realmente estava lendo, para quem quisesse ouvir e ver.

Como eu crio meu filho em um túnel escuro, nunca havia me permitido este tipo de expectativa. Na verdade, com base no que eu lia e no que me diziam, não acreditava que falar de forma compreensível e ser capaz de ler era uma possibilidade para o Antonio. Não tinha um exemplo em mãos, nunca tinha visto uma criança com deleção no cromossomo 6 se comunicando. Não sabia o que esperar. Então me predispus a esperar nada, que é a forma que encontrei de aceitar tudo o que o futuro nos reserva, sejam surpresas, sejam frustrações.

Porém, assistir aquele vídeo abriu meus olhos. Fez-me ver que muitos prognósticos em relação ao Antonio, especialmente os criados por mim, não passam de entulhos na minha cabeça. São ideias sem função prática, previsões sem base, que só ocupam espaço e devem ser devidamente jogadas no lixo. Percebi que quando baixo as expectativas demais, acabo sem querer levantando muros para as possibilidades boas. Deixo de apostar no melhor cenário possível. Elimino das opções exatamente o futuro que sonhei para o meu filho.

Por isso, nesta semana eu fiz uma faxina na minha cabeça. Mantive os pés no chão, organizei as referências médicas, mas eliminei tudo o que colocava as minhas esperanças para baixo. Apaguei as convicções imaginárias e deixei o caminho livre para meu filho se desenvolver. Vou fazer como no experimento da escola. Vou dizer ao Antonio, todos os dias, que ele é da turma A, que ele é capaz de fazer tudo o que quiser. Se ele acreditar nisso, tenho certeza que o mundo inteiro vai acreditar também.

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

O que há por dentro



Talvez por gostar de escrever, talvez por algumas vezes ter acreditado sentir exatamente o que o autor queria dizer, sempre discordei parcialmente do ditado “uma imagem vale mais do que mil palavras”.

Entendo que as palavras sejam ferramentas antigas e difíceis de usar. Algumas são muito pesadas, outras são excessivamente delicadas. Porém, quando bem manejadas, elas funcionam como verdadeiros instrumentos de precisão.

Quando aquela pessoa que não faz o seu tipo demonstra interesse em ter algo a mais com você, por exemplo. Você pode fazer mil caras e bocas, pode tentar dezenas de gestos e insinuações: nada será mais eficiente do que um simples “não”.

Ou então quando quiser expressar o seu amor por alguém. Não é preciso comprar o mais caro dos presentes. Não é necessário fazer esquemas mirabolantes, com chuvas de flores e serenatas embaixo da janela. Bastam três palavras. Se forem muito difíceis de dizer, escreva em um cartão.

Acredito tanto nisso, que fiz das palavras o meu hobby e a minha profissão. Nas músicas, gosto mais do que dizem as letras do que das melodias. Nos filmes, prefiro os diálogos inteligentes às cenas de ação. Neste blog, procuro contar fielmente tudo o que sinto e vejo. Tento ultrapassar a superfície da vida com uma criança especial e explorar camadas mais profundas da convivência com meu filho. Porém, infelizmente, quando se trata de sentimentos, tenho comprovado que não existe tarefa mais incompleta do que tentar fazer uma descrição.

Digo isto porque neste final de semana recebemos a visita de um casal muito querido. São amigos próximos, que nos conhecem bem, mas que, por morarem em outra cidade – e terem a vida corrida como todo mundo – acabam nos acompanhando mais por este blog do que por encontros ou ligações.

Ao verem o Antonio, ficaram surpreendidos. Pelo que liam nos meus textos, imaginavam uma coisa; quando vieram à Brasília, encontraram outra. Viram que o Antonio é um danado (como qualquer criança da idade dele), que sabe muito bem o que quer, que sabe fazer manha para chantagear os pais e que tenta superar de todas as formas as próprias limitações. Viram que, muito mais do que um bebê crescendo, há uma personalidade se formando.

Por mais que eu tente escolher as palavras, é este lado dele que às vezes me escapa. O lado engraçado, o lado divertido, o lado que faz a gente parar de ver a deficiência e começar a ver o que há por dentro: uma criança com qualidades, com defeitos e, principalmente, com emoções.

Nas últimas semanas, o Antonio aprendeu a chorar falsamente para expressar o que quer. Quando viu que funcionava, passou a aplicar a fórmula para tudo: sair do berço, reclamar da mamadeira, descer do colo e assim por diante.

Ontem, enquanto brincava com ele, fui chantageado com prantos melodramáticos toda vez que desligava um brinquedo. A atuação valeria um Oscar. E não caberia, nem que eu escrevesse um livro, em nenhuma descrição.



Crédito da foto lá em cima: Rebecca Omena (www.rebeccaomena.com)

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

O primeiro

Antonio, meu filho,

Hoje é seu aniversário. O seu primeiro aniversário. E só agora, que deu o exato instante em que há um ano você estourou a bolsa e avisou que estava na hora, este texto parece pronto para nascer também.

Apesar de estar completamente voltado para o futuro – e para tudo o que os próximos meses reservam para nós – hoje tirei um tempo para olhar para trás e rever um pouco do que passamos juntos. Foi uma estrada longa, nem sempre percorrida pelo asfalto. Desbravamos mata fechada, pegamos chuva, erramos alguns caminhos. Mas no fim, chegamos ao seu primeiro ano com mais dias bons do que ruins. Mais bênçãos para agradecer do que motivos para lamentar.

Porém, enquanto transportava minha mente para o passado, fiz apenas uma rápida parada no dia do seu nascimento. Olhei em volta, vi que as lembranças ainda estavam todas vivas, mas percebi que não era ali que eu deveria desembarcar. É que na verdade você nasceu há muito tempo. Há muito mais do que um ano. Achei que você gostaria de saber. Achei que valia a pena contar.

**

Talvez no dia em que você saiba ler este texto com os próprios olhos o conceito de distância seja bem diferente, mas acredite: no tempo em que sua mãe e eu começamos a namorar, 1.000 quilômetros entre uma cidade e outra era chão suficiente para que a gente ficasse meses sem se ver.

Ela morava em Brasília, eu em São Paulo. A internet ainda estava nos primórdios. Conversas por vídeo eram pouco mais do que miragem. Viagens de avião e ligações por telefone custavam caro. Ainda mais para dois estudantes como nós, que, apesar de terem saído das fraldas há um tempo considerável, ainda dependiam dos pais para tudo o que você pode imaginar.

As apostas eram todas no fim. Comentaristas de plantão acreditavam no distanciamento natural causado pela falta de convívio. Os mais maledicentes desconfiavam de uma inevitável infidelidade, certos de que, mais dia, menos dia, um de nós trocaria o outro por alguém que estivesse presente, que vivesse por perto.

Porém, sem muitas ambições para o dia seguinte, sua mãe e eu fomos vivendo o nosso namoro um passo de cada vez, com altos e baixos como qualquer outro casal, com intermináveis conversas ao telefone madrugada adentro (depois da meia-noite, a tarifa era menor), com brigas e pazes como em todo relacionamento e, sempre que possível, com visitas para lá e para cá.

Não havia muito tempo que estávamos juntos quando sua mãe fez a primeira visita à minha casa em São Paulo. Conversa vai, conversa vem, quando percebi, ela havia retirado uma estátua de Santo Antônio da mala e colocado bem ao lado da minha cama, para que o santo memorizasse o meu rosto e, provavelmente, me vigiasse de perto.

Santo Antônio, meu filho, segundo a crendice, é o socorro das moças que desejam se casar. O problema é que – dizem os devotos – o santo se compromete apenas em arranjar o marido, sem consulta prévia de caráter, ficha criminal ou situação bancária. Prevenida, sua mãe achou melhor apresentar logo o candidato preferido. Assim Santo Antônio poderia fazer o seu trabalho sem correr o risco de errar.

Caí da gargalhada quando vi a imagem ao lado da minha cama. Mas na verdade, por dentro, estava lisonjeado. Com aquele gesto, sem dizer uma palavra sequer, sua mãe estava me pedindo em casamento. E eu, também sem falar nada, decidi aceitar.

Foi naquele instante que você nasceu, meu filho. Nasceu a ideia de um futuro a dois. Nasceu a vontade de ter filhos juntos. De certa forma, seu nome também nasceu ali. Naquela época eram as nossas ações que falavam. Levar o santo na mala era sua mãe dizendo que queria ficar comigo. Rir em vez de me assustar era eu dizendo que desejava ao menos tentar.

Já se passaram mais de 10 anos e ainda estamos tentando com bastante êxito. Nesse meio tempo, voltei para Brasília, nos casamos (em uma igreja de Santo Antônio, é claro), tivemos alegrias e tristezas, mas, acima de tudo, criamos muitas histórias para contar.

Há exatamente um ano, toda essa insistência fez sentido. A sua chegada provou que era preciso que a gente soubesse nadar contra a maré. Era preciso que a gente aprendesse a viver sem garantias de futuro. Porque em nossa trajetória ainda havia a tarefa de criar um filho, um trabalho difícil por si só, mas quis a vida que esta missão viesse de uma forma especial.

Você, Antonio, é o maior orgulho que eu poderia ter. Em apenas um ano de vida, transformou tudo o que está a sua volta. Conseguiu realizar o mais difícil: mudar as pessoas. Começou por mim e por sua mãe, mas continuou pela nossa família, pelos nossos amigos e agora, gente de todas as partes começa a acompanhar os seus passos, a refletir com os seus desafios, a vibrar com as suas vitórias.

No dia seguinte ao seu nascimento, quando fui fazer o seu registro no cartório, tirei o acento do seu nome. Queria um nome brasileiro, mas escrito de uma forma que qualquer língua pudesse abraçar. Mas no fundo, modifiquei seu nome porque sabia que você era único. Sabia que ganharia o mundo. Então tirei o seu chapéu. São pessoas como você que o sol quer iluminar.

Parabéns pelo seu aniversário, meu filho. Amo você incondicionalmente. 
É uma honra ser seu pai.


Fotos: Tia Déia

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

Um grande fotógrafo

Festa de família. No mínimo, três gerações entre os convidados. Aniversário da avó, formatura do primo, bodas de Jequitibá da tia Inês. Não importa o motivo da reunião: as crianças sempre correrão aos berros, os homens sempre beberão e comerão demais, as mulheres sempre perderão a linha na hora da sobremesa, os mais novos sempre irão querer assoprar as velas junto com o homenageado, e, principalmente, as fotos sempre sairão terrivelmente enquadradas.

A chegada das máquinas digitais ajudou muito. A esta altura, é possível que a maioria dos integrantes de qualquer família – inclusive as mães – esteja curada do hábito medieval de cortar a cabeça das pessoas. Porém, por mais que a tecnologia tenha facilitado a árdua tarefa de encaixar parentes dentro de uma tela retangular, ainda não inventaram um dispositivo que obrigue o fotógrafo da vez a eliminar de quadro uma série elementos que estragam todo e qualquer retrato, como pratos sujos em cima da mesa, interruptores de luz nas paredes e garrafas pet de guaraná.

Estou a encarnações de ser um Henri Cartier-Bresson. Mal me considero um bom fotógrafo amador. No entanto, batizados, aniversários e festas afins são bastante simples de registrar. Talvez para me livrar da cruz de ser o eterno fotógrafo das festas da minha família, talvez para ajudar a quem morra de vergonha dos seus álbuns de infância, deixo aqui um curso rápido para iniciantes.

Primeiro, escolha a cena que deseja fotografar. É fundamental que contenha apenas um tema – não adianta querer agrupar o encontro dos primos, os arranjos de flores da cunhada e o seu poodle de estimação, que está usando uma gravata borboleta especialmente para a ocasião. Em seguida, retire os objetos desnecessários do enquadramento (no caso do encontro dos primos, retire tudo o que não é primo). Regra muito importante: afaste todos os dedos da frente da lente ou do flash. Para finalizar, dispare sem balançar a câmera.

Pronto. Garanto que as fotos ficarão minimamente decentes. Para os mais dedicados, há ainda a possibilidade mudar as cores para preto e branco, o que geralmente deixa tudo com um ar mais profissional e também ameniza a decoração dourada e rosa da festa de quinze anos da sua sobrinha. O resto fica para Sebastião Salgado e J.R. Duran. Só é preciso saber se você aspira a ser como eles, por hobby ou profissão.

A avalanche de celulares com câmera popularizou o hábito de tirar fotos. Sinceramente, acho o fenômeno muito interessante e divertido. Entretanto, mesmo que fiquemos apaixonados pela arte de congelar o tempo, e que juntemos nossos trocados para investir em câmeras com lentes protuberantes e manuais bíblicos, é importante termos a humildade de aceitar que a concepção de uma imagem realmente boa é uma empreitada para poucos. Exige muito mais do que mirar e apertar.

Não basta comprar equipamentos. Não basta haver uma cena interessante à frente. É preciso ser capaz de desfocar o óbvio. E fazer com que a sua própria história, a sua cultura e os seus preconceitos – especialmente a falta deles – revelem algo que apenas você consegue visualizar. Na hora de fotografar, os olhos são meros funcionários. Quem manda é a alma. É ela quem determina o que você consegue enxergar.

Há algum tempo, minha sogra estava com o Antonio no colo, quando dois garotos com cerca de oito anos se aproximaram e perguntaram:
– Quantos anos ele tem?

Ela respondeu:
– Dez meses.

Observando o estrabismo do Antonio, um dos garotos não conteve a surpresa:
– Nossa! Só dez meses e já consegue imitar olho de vesgo direitinho?!

Morri de rir quando me contaram esta história. Foi apenas um instante. E poderia ter passado em branco. Mas o olhar inocente do menino registrou o momento para sempre. Se este garoto conseguir preservar a sua falta de preconceitos e continuar a ver o mundo com uma perspectiva diferente da maioria, que grande fotógrafo o mundo ganhará.


Foto: Henri Cartier-Bresson