A
Terra ainda era uma sopa quente e nutritiva de bactérias quando, por
alguma razão, uma ameba decidiu que preferia ficar na caverna, cuidando
das amebinhas recém-nascidas e assistindo comédias românticas na
televisão, enquanto a outra ameba, com fome e entediada, resolveu que
era melhor sair para caçar – porém, no caminho, achou por bem parar no
bar para fumar um cigarro, jogar uma sinuca e tomar umas cervejas com
alguns protozoários e platelmintos que se divertiam por lá.
Pronto.
Estava declarada a guerra dos sexos. Em algum momento da história do
planeta, a vida se dividiu em dois times: machos e fêmeas. Não sei se
por pré-determinação genética ou pela convivência, ambos os grupos foram
logo adquirindo hábitos típicos, como não levantar a tampa da privada
pra urinar, no caso deles, e ter uma atração doentia por bolsas e
sapatos, no caso delas. Rapidamente, até seres unicelulares acéfalos
tornaram-se capazes de facilmente separar homens para um lado e mulheres
para o outro.
Pausa
para uma reflexão contemporânea. É claro que vivemos em tempo de
diversidade sexual. Entendo e concordo que os estereótipos do que é
masculino e feminino não poderiam estar mais fora de moda. Entre uma
ponta e outra existem umas duzentas novas classificações, todas
igualmente válidas. Porém, mesmo em uma era em que o ser humano começa a
admitir a sua complexidade e a absorver a existência de fenômenos como a
trans-sexualidade, por exemplo, é preciso aceitar que a diferença de
gênero ainda é uma forma prática de subdividir as pessoas. E que,
independentemente da orientação sexual e com a certeza de haver
exceções, o fato de nascer menino ou menina ainda tem uma influência
determinante em nossos hábitos comportamentais.
Feita
esta observação, seguimos adiante. O ponto é que nós, homens, somos
plenamente capazes de ignorar a programação de todos os Telecines, todas
as HBO’s, todas as novelas, todas as séries e, no meu caso, até dos
canais de esportes. Porém, existem dois tipos de canal que miram a
audiência masculina e nos capturam como se fôssemos presas fáceis. Dois
tipos de programa que sempre terão a capacidade de interromper as nossas
zapeadas, mesmo que o conteúdo seja absurdamente ruim. Podem confiar,
falo por experiência própria. Se algum dia você vir um sujeito apertando
o controle remoto sem interesse, até que, de repente, algo na tela
chama atenção e acorda o dito cujo daquele estado letárgico, pode ter
certeza: ou é filme pornô, ou é um documentário no estilo National
Geographic.
A
explicação é simples. Se pararmos para pensar, existe uma relação
bastante próxima entre as duas categorias de entretenimento, é natural
que o público seja o mesmo. Tem cenas do pornô em que a atriz mais
parece uma zebra sendo devorada. Títulos como Vida Selvagem e Boca Mortal
servem tanto para filmes sobre ninfomaníacas famintas quanto para
documentários sobre leões e guepardos. Os feromônios à flor da pele, o
instinto animal, os acasalamentos sem amor: está tudo lá. Mudam apenas
os animais.
Mas
deixemos a pornografia para a mesa de bar. Para a infelicidade de
alguns, a partir daqui o texto segue mais a trilha de elefantes
africanos do que de coelhinhas tchecas. Não é pudor, garanto. É que
minha zapeada nesta semana parou justamente em um filme sobre a migração
de um imenso grupo de paquidermes em busca de água.
A
história se tratava da influência do sol na vida terrestre de um pólo
ao outro. Em algum lugar no meio da África, um grupo de elefantes
atravessava um deserto, por semanas, sem enxergar nada por causa das
tempestades de areia, sem parar para comer ou descansar. Na verdade, era
uma questão de sobrevivência. No meio da secura, tinham de chegar aonde
havia água e vida o mais rápido possível. Não havia chances para quem
ficasse para trás.
Foi
neste momento que o documentário me pegou. Um elefante jovem se perdeu
do grupo e, mesmo cego pela areia nos olhos, conseguiu reencontrar a
trilha dos seus familiares. O problema é que o filhote, inexperiente,
seguiu o caminho na direção contrária. Do alto, com uma visão completa
do deserto, dava para ver a triste cena do elefante, em meio às nuvens
de poeira, se afastando dos mais velhos – e da possibilidade de
sobreviver – cada vez mais.
Não
houve final feliz. A narrativa passou para as técnicas de caça em
equipe de uma matilha de cachorros selvagens e deixou o destino do
elefante subentendido. Melhor assim, sem pieguice, mostrando toda a
imparcialidade das leis da natureza. Você pode ser gentil, você pode ser
inteligente, você pode ser o melhor exemplo da espécie, nada o livra da
possibilidade quase aleatória de antecipar o destino natural de tudo o
que é vivo: morrer.
Fiquei
intrigado com qual teria sido a reação da mãe daquele elefante,
curiosidade que o documentário não saciou. Será que o cérebro desse
animal, folcloricamente conhecido por sua boa memória, recorda do filho
que desapareceu? Será que se ela tivesse visto seu pimpolho desgarrar,
teria voltado para buscá-lo? Será que existe algum teor de humanidade
neste que não só é um dos maiores, mas também um dos mais inteligentes
animais? Quem a natureza prefere? O pai racional, que continua no grupo e
encontra a água? Ou o pai governado pelo coração, que volta para o
deserto e se arrisca a morrer de sede, porém junto com sua cria?
Meu
filho Antonio, com sua falta de um pedaço em um dos cromossomos,
descolou do grupo. Está claro que fará muito, mas não fará nada no tempo
dos outros, não fará nada exatamente como os outros. Meu filho,
literalmente, segue a própria trilha. Às vezes parece que está indo na
direção contrária, às vezes parece que está andando em círculos, mas na
verdade, só uma coisa é certa: assim como o elefantinho, ele – nossa
família – está no meio de uma nuvem de poeira. Não é possível prever o
próximo passo. Não sabemos onde estão as fontes d’água. Não sabemos
quando poderemos beber.
Diferentemente
da elefanta, voltei para buscar meu filhote. Entrei na tempestade de
areia, tomei rajadas por todos os lados, achei por um momento que fosse
me perder. Ainda estou meio confuso, confesso. Não sei direito o caminho
para fora da nuvem de poeira. Mas pelo menos estou de mãos dadas com o
meu filho. E sei, como quem fareja a umidade no ar, que vamos dar um
jeito de sobreviver. Vamos inventar um novo jeito de viver.
Absolutamente lindo!
ResponderExcluirTexto espetacular. O seu filhote vai fazer td no tempo dele, tenha certeza, td tem seu tempo certo e o dele tb chegará.
ResponderExcluirFabinho, não resisto aos documentários desse gênero.
ResponderExcluirFelizmente, evoluímos o bastante para que instinto de sobrevivência aja apenas em defesa da nossa vida e de nossa prole.
Vocês são toda a água que o Antônio precisa.
Abs!
André
A VIDA NOS OFERECE SURPRESAS, AS VEZES NOS ASSUSTAMOS,MAS SEGUIMOS EM FRENTE SEMPRE NOS ALIMENTANDO DAS EXPERIÊNCIAS VIVIDAS E NOS CURANDO PELO CAMINHO. SINTA-SE DE MÃOS DADAS COM MUITOS PAIS, FLIZAN ÉS LITERALMENTE POÉTICO E INSPIRADOR.UM GRANDE ABRAÇO COM MUITO CARINHO PARA VOCES TRES.
ResponderExcluirDemais!!!!!
ResponderExcluirUma linda semana pra vcs, beijo, Ivana
Obrigado Alessandra.
ResponderExcluirSonia, é verdade: ele seguirá o tempo dele. Cabe a mim, ansioso, me adaptar.
ResponderExcluirObrigado André. Abraço
ResponderExcluirLiliane, que bom que comentou! Um beijão
ResponderExcluirObrigado Ivana. Uma boa semana para você também. Bj
ResponderExcluirVenho aqui declarar que o animalzinho está errado!! Ontem pude comprovar que o Antonio é ursinho, e não elefantinho!! Ficamos apaixonadas por ele... e Nicolau sentiu falta de cheirar uma fralda hoje de manhã...
ResponderExcluirTerei que reescrever o post. Rs E fralda pra cheirar é o que não falta nesta casa. Logo combinamos um reencontro. Nicolau já comeu todo o osso?
ResponderExcluirLógico!!! Não sossegou enquanto não terminou!! <3
ResponderExcluirCaro Fábio,
ResponderExcluirLindo o texto. Poético.
Ainda não sei quem é mais privilegiado nós por termos uma criança especial para nos ensinar a conviver com a diferença ou eles por ter uma família que os ama e pode oferecer tratamentos e cuidados no sentido de integrá-los e superar a dificuldade.
Abraços, boa semana.
Maria
Oi Fabio! Sou mae da pequenina que nao conseguiu segurar o pesado bouquet de pirulito no casamento do tio Thiago com a tia Deia! Foram eles que me apresentaram o seu blog, e desde entao estou apaixonada pelos seus textos e pela sua familia! Precisamos marcar um encontro da Maria Fernanda com o Tom Tom! Um otimo ano para vcs e que Deus continue abencoando e iluminando o caminho e a vida de vcs!
ResponderExcluirFábio, levante as mãos para o céu e agradeça à Deus por ter dissernimento, e um bom convênio médico para o seu filho. Mais do que nunca, agradeça por você e sua esposa terem a clareza de tudo o que acontece, para tentarem espanar a poeira.
ResponderExcluirFiquei pensando se fosse uma família de renda baixa, sem algum tipo de conhecimento para correr atrás, pesquisar, se informar, sem condições de buscar bons hospitais.
O que seria do Antonio... teria se perdido do caminho igual o Elefantinho.
Força.
Andrea
Desculpe responder aqui, mas achei pertinente: Andrea, não discordo que a renda dos pais ajuda, e muito, no tratamento de uma criança especial. Mas não se pode dar ao dinheiro valor maior do que se tem. O ESSENCIAL aqui é o amor, paciência, resiliência e coragem de lutar dos pais. E isso não depende de contas bancárias, ou bons planos de saúde... Fabiola Weiss
ExcluirFábio, que lindo! Lindo, lindo lindo... não sei dizer outra koisa.
ResponderExcluirVc ainda não sabe ou ainda não se convenceu, mas o fato de ter voltado pra buscar teu filhote, fez ambos saírem da nuvem de poeira. Serão certezas e receios aquietados pelo tempo, na medida em que o Antonio for desbravando o deserto. E outros surgiráo, é verdade, mas essa é a graça da vida. O mais importante é que o caminho seja percorrido a três (ou em bando, porque eu tô com vcs e não abro)!
Amo segundas-feiras... tu arrasas, guri!
Beijo pra ti, pro Antonio e pra Ana.
Antônio, encontrei seu blog por indicação da karla e tenho que concordar om ela, maravilhoso!!! Acho que terá mais uma leitora...
ResponderExcluirBjusss
Cybelle
Fábio, olá!
ResponderExcluirApós ler seu texto, nesta bela manhã, fiquei toda arrepiada.
Suas palavras flutuam perfeitamente entre elas e nos trazem inúmeras possibilidades de análises sobre nossas vidas.
Amei seu texto! Parabéns!
Assim como você acredito que também existem muitos pais que não irão deixar seus filhos para trás, isto é maravilhosamente perfeito.
Feliz do Antônio por ter nascido num núcleo familiar apaixonante e disposto a enfrentar as tempestadesde areia que ainda virão.
Forte abraço.
Que ótimo esse, Fábio!!!! Adoro documentários africanos tbm!!! Acho que agora descobrimos a quem o Dudu puxou.
ResponderExcluirO bom é saber que o elefantinho Antonio sempre estará acompanhado por um de nós, mesmo que o papai ou a mamãe estejam ocupados para resgatá-lo, as titias, avós, primos e amigos estarão olhando por ele!!
Beijo e boa semana.
Beta.
Fabinho, lindeza de texto! Adoramos a visita do trio . Beijo grande
ResponderExcluirO amor que vence os medos, que impulciona e inspira para a esperança e a descoberta, se apresentou para voces com o nome de Antonio. Tua chave de portal.
ResponderExcluirMaria, somos nós os privilegiados. Certamente. Eles transformam a nossa vida só por existirem. bj
ResponderExcluirCarol, que bom que tem lido. Claro que temos que apresentar os pimpolhos. Numa próxima vinda sua a Brasília, sem falta. Um beijo
ResponderExcluirAndrea, li seu comentário quando estava indo dormir. Agradeci exatamenta ao que você lembrou: um bom plano, dissernimento, ter condições de ajudar o Tom. Depois refleti, sabe que as famílias simples às vezes acabam aceitando melhor a diferença do que as famílias em melhores condições econômicas? Não tenho como provar, mas é uma sensação que tenho tido depois que o Tom nasceu. Um bj
ResponderExcluirKá, é muito bom tê-la em nosso bando. rs. Um grande beijo
ResponderExcluirCybelle, não sei se você se referiu ao Antonio intencionalmente ou não, de qualquer forma, passei o recado para ele. E ele ficou MUITO feliz que você acessou o blog. rs. bjão. Te espero às segundas.
ResponderExcluirRejane, quem tem família tem tudo. E isso o Antonio tem. Um bj
ResponderExcluirO Antonio seguindo a própria trilha, tb está mostrando aos papais que é preciso mudar. Nessa trilha, ele vai na frente e vcs apenas tem que seguir os passinhos dele. Não precisam correr!!!
ResponderExcluirBeta, são vocês que sempre nos resgatam: família e amigos. Um beijo
ResponderExcluirAna, que bom que gostou. Também adoramos a visita. Ontem mandei ver no doce de leite. bj
ResponderExcluirAriane e Sid, um filho é a chave sim. Para um novo mundo. E para um novo sentido de vida.
ResponderExcluirCléo, você tem razão. Ele que está ditando o caminho. E está sendo muito bom.
ResponderExcluirFa, com certeza vocês encontrarão seu próprio caminho para fora da nuvem obscura. Não esqueça nunca que nesse percurso vocês irão se deparar com amigos, familiares e profissionais que disponibilzarão óculos de proteção contra poeira, prognósticos meteorológicos e prescrições de bússolas que os direcionará para grandes fontes de águas límpidas... Beijos, Ca.
ResponderExcluirFábio,impressionante como teus textos sempre me emocionam.Belo texto como sempre.
ResponderExcluirAbraços para você,ah é no Antônio também!
Se a gente parar pra pensar, cada um sempre faz as coisas no seu próprio tempo (eu só entendi Física depois de dois anos de cursinho, quando eu deveria ter entendido no segundo grau... rs). O que importa é que a gente tenha liberdade pra ter nosso próprio tempo, sem ser cobrado nem punido por isso. E não há dúvidas de que você(s) sabem bem respeitar o tempo do Antonio. Ele é um menino de sorte.
ResponderExcluirSobre os documentários, eu também gosto muito deles. E, em especial, sobre documentários sobre elefantes. Esses animais têm a estrutura familiar muito semelhante a nossa. Uma vez vi um documentário sobre um "reposicionamento espacial" que fizeram numa reserva na África, em que separaram alguns bebês elefantes das mães. Depois de um tempo, esses bebês separados começaram a se reunir e matar rinocerontes, por pura rebeldia (elefantes não comem rinocerontes). Isso aconteceu até eles serem reintegrados às famílias. É muito interessante perceber o tanto de bicho que nós temos.
Beijão.
É assim que nascem as novas trilhas. Alguém já disse: fazemos o caminho, caminhando. Parabéns!!!
ResponderExcluirCá, como você disse, tem muita gente nos ajudando sim. Um beijo
ResponderExcluirLeandro, obrigado. Um abraço
ResponderExcluirJu, disse tudo: somos bicho. bjão
ResponderExcluirCaparroz, o Antonio está de facão na mão abrindo a dele. E o pai orgulhoso indo logo atrás. Abraço
ResponderExcluirFala, bonito! Em um momento "estrógeno-HBO", justamente ontem, a Milu me puxou para o sofá e assistimos ao "Amor e Outras Drogas". Não sei se já viu, mas a síntese é incrivelmente a mesma do texto desta semana: ter, porém, não depender da esperança da reversão do problema de saúde para ser feliz. Belo texto, conexões, alegorias, comparações, como sempre! Ab do amigo e fã, DV
ResponderExcluirNão vi. Agora vou ver. Abraço meu velho.
ResponderExcluirConheci teu sitelendo os comentários no blog do Carpinejar. Tenho gostado mt de ler teus textos. Te digo, com plena certeza, que não só teu filho, mas vc e tua esposa são especiais. Somente pessoas especiais recebem esses anjos lindos para cuidá-los, amá-los e dão uma vida maravilhosa pra eles! Teu filho é lindo! E ele é uma criança normal. A única diferença é que ele tem o tempo dele! Cada um de nós tem suas características individuais. E ele tem as dele. Fiquei mt admirada e feliz pelo modo em que vc e sua esposa tratam do assunto. É isso aí, vivendo cada dia de uma vez e curtindo todos os momentos de evolução é vitório. Esse lind Garoto só trará alegrias, tenham certeza disso! Um abraço fraterno à vcs, Papais!
ResponderExcluirJuli, muito obrigado. Ele tem nos feito crescer e ver a vida com olhos diferentes. Só isso já vale qualquer esforço. E quando ele conquista algo novo, é como se conquistássemos também. Uma alegria imensa.
ResponderExcluirQue bom que acesssou e comentou. Espero que volte sempre.
Irretocável- o texto e o seu amor de pai
ResponderExcluirFabiola Weiss
Obrigado, Fabíola. E sim, o essencial é o amor. Quando levamos o Antonio a algum serviço público de saúde (usamos bastante, por várias razões), acabamos vendo famílias de todas as classes enfrentando as situações com seus bebês. O que diferencia uma das outras não é a condição econômica, mas sim a aceitação. Um bj
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