segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

Pegue um bom jacaré

Verão é sinônimo de praia. E praia, para mim, é sinônimo de pegar jacaré.

Não que eu não aprecie o interminável cardápio de quitutes anunciado aos berros pelos ambulantes. Sou consumidor voraz de queijos, picolés e milhos de origem desconhecida e higiene questionável. Porém, mesmo na mais deserta das praias, onde se pode ouvir o mar em vez dos slogans do vendedor de empada, há um item que não pode faltar: uma onda, uma marola que seja, para pegar um bom jacaré.

Digo isso porque talvez alguns tenham sentido falta de um texto de Natal neste blog. Em um ano tão marcante, com tanto para refletir, havia material de sobra para uma mensagem especial no mais universal dos feriados cristãos, mesmo que não fosse segunda-feira. Porém tenho uma justificativa para minha ausência. É que 2011, para mim, tem sido como se eu estivesse em um imenso jacaré. Um jacaré de doze meses. E como inventei de pegar uma onda grande, acabei tomando um caixote bem no final.

Na semana passada, retornei de uma viagem e encontrei o Antonio com febre em casa. “Acho que é saudade do papai”, brincou a Ana, com aquela preocupação no olhar que já conheço bem. Foram 24 horas com temperatura acima de 38 graus. Os resultados dos exames de sangue e urina vieram bastante alterados. Quando percebemos, em plena semana anterior ao Natal, estávamos internados em um hospital.

Parêntesis para os fãs de House: o Antonio estava com uma infecção urinária importante, com suspeita de que tenha atingido os rins. Está sendo tratado com doses equestres de antibiótico, devidamente injetadas no bumbum. No início, passava de duas a três horas magoado após a espetada, fazendo um bico tão irresistível, que dava vontade de fotografar. Agora, experiente, grita apenas no momento da agulha, depois mia por uns minutos e volta a cair na gargalhada.

Com exceção dos bicos fofos, os dias de hospital foram um martírio. Ironicamente, naquela semana eu havia escrito algo sobre não querer voltar ao passado e, logo depois, tudo o que eu desejava era retornar aos momentos sem injeções, sem enfermeiras, sem dor. Ver meu filho sofrer novamente, nos mesmos moldes que vi nos seus primeiros meses de vida, serviu para me acordar. Criar um filho, especial ou não, é uma subida constante. O prêmio por um degrau vencido é outro degrau a esperar.

Tivemos alta na manhã da véspera de Natal. Iríamos poder passar o feriado com a nossa família, no calor de casa, o melhor presente que Papai Noel poderia providenciar. A medicação continuaria sendo feita em domicílio, até o Antonio conseguir mandar todas as bactérias embora. A febre também deu trégua. O sorriso do meu banguela voltou a dominar.

Aliviado, mas exaurido pelo susto e pela pouca maciez do sofá do hospital em que dormi por três noites, não tive forças para escrever um texto de Natal. Não seria justo nublar uma data tão querida com uma chuva que só atingiu o meu telhado.

Porém, assim como se pode tirar energia de lixo, consegui extrair algo de bom desses dias de internação. Vi minha mulher e eu lidando com as dúvidas e os medos com movimentos mais conscientes. Percebi que estamos mais confiantes, lutando com mais eficiência, tomando as decisões certas mais rapidamente. Em vez de aceitar as opiniões dos médicos passivamente, dialogamos com eles e tomamos as rédeas das decisões. Intervimos o tempo todo a favor do nosso filho. Exercitamos, literalmente, o que é ser responsável por alguém. E acredito que nos saímos bem.

O decorrer deste ano foi instável e borbulhoso, mas foi também inesquecível. Sem dúvida, foi a onda mais forte que a Ana e eu já pegamos. Ainda estamos meio tontos com o nosso caixote, ainda estamos com os corpos arranhados. Por um momento, deixamos todos ao nosso redor preocupados, mas felizmente conseguimos desafogar. E como crianças em um verão bom, já estamos nadando de volta para o fundo. O ano novo está chegando. Temos outro jacaré para pegar.

Um bom 2012 a todos.

Fábio, Ana e Antonio.

The Underwater Project, Mark Tipple - www.theunderwaterproject.com

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Férias de mim


Tenho um amigo que foi de Brasília ao Rio de Janeiro a pé. Um louco. Embarcou em um projeto profissional – andar por 100 dias, passar por mais de 100 cidades e registrar a situação dos esportes no Brasil –, mas tenho certeza que, enquanto queimava as solas dos tênis e as batatas das pernas país adentro, caminhava também para o seu próprio interior. Fez uma viagem pessoal.

Lembrei disto neste mês em que meu filho foi à praia pela primeira vez. Ele voou para mil e tantos quilômetros de mim. Porém, mesmo arrependido por não ter me organizado para acompanhá-lo, aproveitei para também fazer uma viagem para longe. Tirei férias do corre-corre que é ser um pai de família e visitei, por alguns poucos dias, a vida que tinha antes de casar e colocar um bebê no mundo. Voltei a um tempo distante, em que domingos ainda eram feitos para dormir.

Sempre que retorno a um lugar que não vou há anos tenho dificuldade de encaixá-lo perfeitamente no cenário deixei guardado na memória. As árvores, as casas e muitas vezes até as pessoas estão paradas, localizadas nas mesmas coordenadas, mas a cena toda, por alguma razão que não sei explicar, parece ter perdido o verniz. A única exceção talvez sejam os cheiros. Estes sim dão vida ao passado. Cheiros são o melhor meio de transporte para um tempo feliz.

As minhas férias das trocas de fraldas e das idas ao supermercado, em que voltei para os meus vinte e poucos anos, não foram diferentes. Tive mais uma vez essa sensação de que tudo em volta estava meio desbotado. Procurei os cheiros, mas encontrei apenas o azedo da cerveja, e confesso que ultimamente ando pendendo para os aromas do vinho. Talvez isso ocorra porque sempre tirei da vida, na idade certa, o máximo que ela pode me dar. Tenho carinho pelos dias que passaram, mas o agora me atrai muito mais do que a cor amarelada dos momentos que ficaram para trás.

Em compensação, enquanto meu filho se sujava de areia, eu cheirava diariamente seu travesseiro. Dormia todas as noites no lado oposto da minha cama, o lado que preserva o perfume da minha mulher. Trabalhava muito. Lia bastante. Procurava me ocupar, na esperança de apressar o tempo. Contava as horas para ver a minha família encher a casa de barulho e alegria novamente.

No fim, apesar de ter tirado alguns preciosos dias para mim, estava cansado de caminhar sozinho. Foi então que lembrei do meu amigo e da sua aventura a pé pelas estradas. Imagino que ele deva ter gostado de chegar tão longe, que deva ter achado divertido ir a lugares esquecidos, mas, nos últimos passos, tenho certeza de que estava com uma vontade imensa de voltar para a sua casa, para a sua cama, para o seu dia-a-dia.

Foi assim que me senti quando minha mulher e meu filho me deixaram livre para viajar, mesmo que fosse apenas internamente. Fui contente visitar o meu ontem, mas só me senti em casa quando retornei para a minha realidade atual. Não quero pintar um quadro mais bonito do que é. Minha vida é cheia de problemas, como a de todo mundo. Mas nessas férias de mim, percebi que não quero estar em outra pele, não quero estar em outro tempo. No desembarque do aeroporto, quando avistei minha mulher chegando com meu filho no colo, meu coração disparou. Ter saudade do presente é o mais próximo que se pode chegar de ser feliz.

segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

Antecipação

Depois de relutar por meses, miro o livro na estante do meu quarto. Está do jeito que eu deixei: meio escondido, quase o último da fileira, com sua capa vermelho sangue, ironicamente adequada para uma história que um dia me encantou, mas que hoje me faz sofrer.

Chego a passar os dedos por uma pequena seleção de livros em frente àquele. Outras leituras com as quais me envolvi anteriormente e que gosto de manter dormindo ao meu lado. Porém, desta vez não estou no quarto em busca de reencontros fáceis. Quero uma frase específica daquele livro dolorido. Uma linha perdida naquelas páginas que tenho evitado desde que o meu filho veio ao mundo – e trouxe com ele todas as incertezas incluídas no pacote de uma criança especial.

* * *

Não tenho a menor ideia do que acontece quando as energias do sol e da lua entram em oposição entre a nona e a terceira casas do meu signo. Não entendo porque isso determina que eu deva rever minhas convicções, usar roupas de cor roxa ou adotar como número da sorte justamente o 7 ou o 33. Meus miolos mais fracos até se divertem com as previsões dos astrólogos, mas minha massa cinzenta é mal humorada e acaba com a palhaçada antes que eu acredite que encontrarei um novo amor ou que uma catástrofe está prestes a acontecer.

Leio o horóscopo para rir. Não acredito que minha personalidade tenha sido moldada pela posição das estrelas no dia do meu nascimento. Nunca fiz mapa astral. Cigana, para mim, é fantasia de carnaval.

Porém, devo confessar que em alguma ruela pobre da minha alma reside um homem que desconfia da inexistência do acaso. É misticismo barato, eu sei, mas às vezes me pego pensando que podemos, sim, ter um caminho desenhado. Algumas coincidências parecem mais do que coincidências. E fico me perguntando se foi destino ou mero acaso.

Não tenho a resposta. Só sei que algum dos dois acionou os seus contatos para que eu entrasse numa livraria, poucos dias depois de descobrir que a minha mulher estava grávida, e me deparasse com um livro chamado O filho eterno.

Fiquei impressionado pela extensa lista de prêmios exibidos na capa. Descobri que se tratava do relato autobiográfico de um pai – o escritor Cristovão Tezza – sobre o nascimento do seu primeiro filho. Na dedicatória, havia um simples Para Ana, o mesmo nome da minha mulher. A história começava quando o autor tinha 28 anos. Eu havia acabado de fazer 29, mas àquela altura já estava completamente absorvido por tantas coincidências. Queria ler o livro ali mesmo, em pé, na livraria. Apenas um detalhe me freava: o filho do autor nasceu com Síndrome de Down.

A notícia da paternidade domestica até o mais bruto dos homens. Toma conta, muda as nossas ações e reações. Meus pensamentos estavam todos voltados para a saúde do meu filho e da minha esposa. A simples palavra síndrome me causou repulsa. Queria distância de qualquer assunto que, por azar ou superstição, pudesse atrair algum mal.

Devolvi o livro para a prateleira e voltei para casa. Achei que a leitura seria pesada demais para o período da gestação e poderia ter um impacto negativo em mim. Tentei esquecer, considerei algumas indicações para ler, mas a história do pai do menino com Down insistia em ecoar na minha cabeça. Como sempre, com vergonha de dar atenção para bobagens míticas, rolei na cama refletindo sobre acasos e destinos. Não era possível que eu tivesse parado precisamente em frente àquele livro sem nenhuma razão. Como uma vítima de hipnose, estava completamente rendido. No dia seguinte, retornei à livraria, peguei o livro e, antes que eu pudesse desistir, paguei.

* * *

Depois de relutar por meses, miro o livro na estante do meu quarto. Quando o li pela primeira vez, a vida ainda era simples. Devorei página por página, não conseguia parar de ler. Lembro de me emocionar com o sofrimento daquele homem. Ao mesmo tempo em que ele não escondia a indignação por ter um filho “retardado”, juntava forças para tolerar as idas aos médicos, dava um jeito de digerir as próprias frustrações e, apesar de toda a raiva e toda a dor, talvez por causa delas, finalmente encontrou a inspiração para deslanchar a sua carreira de escritor.

Meus olhos enchiam-se d’água. Eu lia com a distância e a pena de quem nunca passou por uma experiência parecida. E não imaginava, nem por um segundo, que estava lendo a exata descrição do que iria me acontecer. O autor foi meu vidente de araque. Acertou sem querer.

Apesar da síndrome do Antonio não ser Down, o luto dos pais, os sinais morfológicos e as terapias possíveis para qualquer desordem genética são incrivelmente semelhantes. Implantação baixa das orelhas, hipotonia, cardiopatia: os termos estavam todos no livro, mas não os memorizei. Cheguei à última página com o coração despedaçado, porém confiei na imunidade dos que pensam positivo. Se desviasse a cabeça daquilo, nada iria me acontecer.

Hoje, quase um ano depois do nascimento do Antonio, tive que fazer um esforço imenso para folhear o livro, em vez de jogá-lo pela janela. Logo nas primeiras linhas, vi que tudo tinha adquirido um novo sentido. Agora eu sei, pensei, o que ele quis dizer. Não achei a frase que estava buscando. Fui me perdendo no meio das páginas, lambendo as feridas da minha própria história.

Encontrei, porém, um trecho bem mais adequado a esse texto. Um poema que o autor escreveu antes do seu filho nascer e cujos versos dão a sensação de que ele anteviu o problema, de que viveu – como eu – algum tipo de antecipação inconsciente. O próprio escritor rejeita a poesia. Odeia a ideia de premonição mítica. Prefere o azar, o mero acaso, mesmo que isso torne tudo mais insuportável.

Entendo a revolta dele. Também senti raiva do gosto açucarado dos textos que escrevi enquanto esperava pelo meu filho. A chegada do Antonio foi um golpe brutal. O pai inocente e esperançoso que habitava em mim agonizou, entrou em coma profundo, mas conseguiu sobreviver. Nos dias difíceis, é ele quem junta os cacos, limpa o sangue e diz que a vida é assim mesmo, só nos resta continuar a viver. Quanto ao acaso e ao destino, resolvi tirar proveito deles. Se eu não tivesse o Antonio, nunca teria tanta inspiração para escrever.



Segue o poema retirado do livro O filho eterno, de Cristovão Tezza:


“Nada do que não foi
poderia ter sido.
Não há outro tempo
sobre esse tempo.

Amanhã e amanhã
é uma escada curva.
Ninguém abre a porta
ainda em modelo.
Hoje ouvimos os ratos
roendo o outro lado.
Ninguém chegou lá,
porque hoje é aqui.

Mas o sonho insiste
o sonho transporta
o sonho desenha
uma escada reta.

Quando cortas o pão
o depois-de-amanhã
não te interessa.
Mesmo que sabes:
todas as forças
estão reunidas
para que o dia amanheça.”


Curiosidade (ou acaso, ou ironia do destino): momentos depois que escrevi este texto, fui jantar na casa da minha mãe. Sem ter ideia do que eu andava escrevendo, uma das minhas irmãs se aproximou de mim e disse: passei numa livraria e encomendei um livro para você. Ganha um doce quem adivinhar qual era o título.

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

Odeio perguntas cretinas

Bastidores: este texto nasceu da enquete Post sob Encomenda, realizada neste blog há alguns dias. Havia quatro opções de títulos para votação e eu tinha três belas ideias para escrever. Quis o destino – ou melhor, quiseram 30 eleitores – que o post se chamasse “Odeio Perguntas Cretinas”. A única opção para a qual eu não tinha me preparado. 

Mas lá vai. Promessa feita é promessa cumprida. Próximo Post sob Encomenda em janeiro. 

Odeio perguntas cretinas 

“O pai dele é coreano?”, pergunta uma senhora à minha mulher, no corredor do supermercado, referindo-se aos olhos puxados do meu filho Antonio. A Ana responde com um simples não e segue olhando as ofertas do dia. 

Curiosa, a senhora arrisca novamente: “Então é japonês?”. Apesar da inconveniência, minha esposa faz um esforço para esboçar um leve sorriso e nega pela segunda vez, ainda de forma bastante polida. 

A partir deste momento, o grupo desuniforme de quase sete bilhões de seres vivos que chamamos de humanidade divide-se em dois. Os mais agraciados pela seleção natural de Darwin, que desde o tempo das cavernas conseguiram solucionar problemas muito complexos, como descobrir o fogo, rapidamente perceberiam a inadequação daquelas indagações, ainda mais quando se dirigiam a uma mãe com bebê de colo, alguém que mal tem tempo para almoçar, muito menos para ficar de papo enquanto escolhe os tomates na seção de hortifruti. Entretanto, uma linha científica alternativa suspeita que a outra parcela do grupo chegou a esses tempos modernos por pura questão de sorte, ou por acaso, talvez comendo restos de dinossauros e mamutes caçados pelos outros, pois, parece, sobreviveu ao paleolítico, atravessou o neolítico e circula até hoje por aí – nos corredores da Câmara, do Senado e dos supermercados –, sem se dar ao trabalho de desenvolver a capacidade de raciocinar. 

A senhora em questão, indubitavelmente, faz parte da segunda metade do grupo. Incansável, entretida com a brincadeira, ela resolveu testar seus dotes de adivinhação uma terceira vez, questionando se o pai do Antonio era chinês, ao que a minha mulher, desta vez mais ríspida, respondeu com uma explicação genérica de que nossa família tem os olhos pequenos e se afastou da interrogadora antes que ela percorresse todas as demais nações do continente asiático com suas suposições. 

Os dicionários chamam de cretino o indivíduo que tem grave deficiência mental. Que me perdoem Aurélio, Houaiss e outros senhores das palavras, mas esta definição está completamente incorreta. Eu, como pai de um filho com este problema, afirmo, assino embaixo e reconheço em cartório que pessoas como o Antonio podem sofrer de tudo, menos de cretinismo. Hoje, ao observar alguém com deficiência, em vez de notar os movimentos descoordenados e os pensamentos desorganizados, vejo um cérebro lutando com todas as forças para funcionar, muitas vezes com mais afinco e dedicação do que nós, os normais, o fazemos, seja lá o que a palavra normal signifique. Cretinice mesmo é ter todo o intelecto disponível, mas usá-lo com parcimônia. É ter preguiça – e não inabilidade – de pensar. 

No tempo em que tive a oportunidade de dar aulas, aprendi a respeitar o valor de uma dúvida, por mais estúpida que pareça. Quando o objetivo é obter um novo conhecimento, não há censura para as perguntas. O problema é quando, espertos que somos, acreditamos já sabermos a resposta e, sem querer, ou querendo, deixamos esta pressuposição escapar. A chance de estar certo existe. Porém, não se pode perder de vista o risco de cometer um erro presunçoso, uma gafe desrespeitosa ou simplesmente de se passar por cretino, quando existem formas bem melhores de formular as mesmas questões. 

Perdão pela teoria maçante de professor antiquado. Você que dormiu no terceiro parágrafo, por favor, acorde. Chegamos aos exemplos práticos. Vale a pena anotar. 

Não há nada mais cretino do que vislumbrar uma barriguinha em uma mulher e disparar “Para quando é o bebê?”. Por mais que você acredite que ela não tenha exagerado no chope com frango a passarinho, existe a possibilidade de não haver um filho ali dentro. É mais prudente comentar algo genérico sobre crianças. Se ela estiver grávida, certamente dirá. 

Ligar para um conhecido no meio da tarde, num dia de semana, e perguntar “Você está no trabalho?” também é cretino. Às vezes tenho vontade de responder que não, que estou no motel, gabaritando o Kama Sutra, mas que a posição da catapulta não impede de falar ao telefone. Não importa o grau de intimidade, pergunte apenas se a pessoa pode atender. 

Perguntar quanto alguém pagou por um carro ou apartamento: muito cretino. Deixa implícito que você tem uma noção do valor e que, na verdade, está avaliando se a pessoa fez bom negócio ou não. Ou pior, sugere que o que você realmente quer saber é o poder de compra do seu amigo, fingindo não fazer uma comparação interna com as suas próprias posses e utilizar o resultado da conta da maneira menos nobre possível: para se sentir melhor ou pior. 

A lista é grande. Não quero me estender. Como exprimi antes, a cretinice não está na curiosidade, mas na ilusão de saber o que a outra pessoa irá dizer. O segredo é segurar a língua a tempo e não revelar a sua hipótese. É a única maneira de se proteger. 

Há alguns anos, uma amiga minha cruzou na rua com uma conhecida dos tempos de escola. Elas se abraçaram com saudades, deram gritinhos, perguntaram como andavam as coisas, se abraçaram de novo, celebraram com nostalgia aquele encontro inesperado. A colega, confiando na antiga cumplicidade de amigas de colégio, provavelmente sentindo o prazer de ter superado algum trauma de infância, contou animadíssima que finalmente tinha tomado coragem e feito uma cirurgia plástica. Minha amiga, sem pensar, logo soltou: “Não acredito! No queixo?” O sorriso da colega desabou e quebrou no chão. Perplexa, em choque, tateando o queixo com a mão, a garota respondeu: “Não."