Algumas dores são tão intensas, que o corpo precisa de um tempo para se manifestar. Elas não se revelam no instante da pancada. Não chegam estabanadas, fazendo alarde. Dores de verdade se aproximam em silêncio e esperam pacientemente o telefone sem fio das nossas células nervosas fazer a notícia correr. As cordas vocais congelam de medo. Os pulmões suspendem a respiração. O coração, entreguista, bate desesperado, nem tenta disfarçar. Só depois que todos os sistemas estão devidamente alarmados, a dor faz sua entrada triunfal, aguda, insuportável. Até os mais resistentes às vezes se rendem e deixam escapar uma lágrima.
Deve ter sido deste tipo a dor que atingiu uma amiga da minha mulher, ainda no tempo de adolescente. As duas papeavam tranquilas, andando por uma rua meio escura, mas ainda era cedo da noite, estavam perto de casa, não havia motivos para preocupação. De repente, surge um estranho por trás delas. O homem dá uma violenta trombada na menina e sai correndo, aparentemente sem levar nada. Assustadas, sem entender o que havia acabado de acontecer, as duas continuaram o trajeto com um pouco mais de pressa, até que a garota atingida começou a se sentir mal. Só então minha esposa percebeu que sua amiga estava sangrando – e muito. A garota havia levado uma facada profunda nas costas, mas o cérebro, que não é besta, foi avisando aos poucos. Achou melhor ir devagar.
Sempre que a Ana e eu contamos que temos um filho especial, uma das primeiras perguntas que nos fazem é se descobrimos durante a gravidez. Não, não descobrimos. Fizemos o melhor pré-natal que pudemos. Realizamos todos os exames. Tomamos todos os cuidados. Tivemos até a chance de repetir algumas imagens, só pela alegria de rever o nosso bebê ou conferir alguma informação. Com exceção de um ganho de peso mais lento nos últimos meses de gestação, nada levantava suspeitas. Estávamos preparados para tudo o que nos alertaram, para todas as possibilidades corriqueiras, mas nosso destino estava decidido a desviar o trilho e fazer o nosso caminho rumar para outros lados.
Até hoje nos questionamos se gostaríamos de ter sabido com antecedência. Perdidos no mundo das hipóteses, imaginamos que teríamos nos preparado para receber o Antonio com mais serenidade. Talvez tivéssemos levado menos sustos, talvez o pós-parto tivesse sido menos traumático. Por outro lado, pensamos que a antecipação da dor poderia entupir as nossas cabeças de preocupações além das usuais e que isso apenas tornaria os últimos meses de gravidez ainda mais estressantes. A dúvida nos acompanhará para o resto das nossas vidas. A maior crueldade do tempo não é a sua passagem. É a impossibilidade de voltar.
O fato é que no mesmo dia em que tivemos a maior felicidade do mundo – ver o nosso filho pela primeira vez –, sentimos a maior dor das nossas vidas. Tomamos a nossa facada pelas costas. Meu sangue jorrou imediatamente. Em poucas horas, mergulhei num sofrimento abissal. A Ana, a exemplo de sua amiga da adolescência (que por sinal, sobreviveu ao ferimento), não reagiu ao impacto na mesma hora. Permaneceu impávida, concentrada, sem um pingo de lágrima, tentando fazer o Antonio mamar.
Demorou quinze dias para eu vê-la desabar. Conversávamos sobre nossos novos assuntos, sobre mais uma tentativa frustrada de fazer o Antonio pegar o peito. Ela virou pra mim, olhos já molhados e confessou o inconfessável: “no fundo, a gente sabe que ele tem alguma coisa, né?”. Chorou no meu colo. Choramos juntos. Desejávamos com todas as forças que ele fosse igual aos outros bebês, mas começávamos a perceber havia algo diferente. Choramos por medo de perder as esperanças. Choramos porque, contra a nossa própria vontade, estávamos começando a aceitar.
Não é preciso uma análise muito profunda para descobrir porque a Ana fugiu da dor, porque demorou tanto para extravasar. Quando não se tinha uma confirmação médica, quando não se tinha um exame definitivo, quando tudo não passava de suspeita, chorar era como se estivéssemos traindo o nosso filho. Era como se concordássemos com os prognósticos incertos e pouco animadores dos médicos. Como se estivéssemos abandonando a luta.
Hoje temos o diagnóstico e, ao contrário dos nossos medos de antes, não perdemos a esperança. A diferença é que em vez de a depositarmos na imagem de uma criança normal, apostamos nossas fichas em pequenas conquistas diárias. Aceitamos que o desenvolvimento do Antonio seja a passo de formiga, mas é pra frente que queremos andar. A dor de descobrir que seu filho é especial é imensa, não desejo a ninguém. Mas, pelo menos no meu caso, acho que foi bom não ter sido avisado com antecedência. Pois quando eu fiquei sabendo, já estava irreversivelmente apaixonado pelo meu filho. O cérebro viu que a dor seria grande, ele quis se desesperar. Mas o coração, num raro momento de sensatez, disse: calma, já vai passar.