Quando eu era pequeno, meu pai me levou a
uma escolinha de futebol. Não tenho a menor ideia por quê, mas eu fiquei lá,
parado, feito burro empacado, e não havia nada na que me fizesse entrar no
campo. Lembro vagamente da cena, mas o motivo de não querer jogar é um daqueles
mistérios da alma que nem hipnose ou regressão desvenda. Irei para o caixão sem
saber.
Faltou-me visão. Aos cinco anos eu já
deveria ter concluído que aquilo sim era futuro. Morar na Europa, dirigir
carrões, escolher mulheres, ganhar rios de dinheiro, tudo sem ter que ser capaz
de pronunciar palavras desnecessárias como “inconstitucional”, ou mesmo as
necessárias, como “brócolis” ou “registro”.
Ser jogador de futebol era o sonho de dez
entre dez amigos, e eles treinavam com afinco, manhã, tarde e noite, para tal.
Matavam aula para continuar a pelada do recreio. Tomavam bronca das mães para
ficar mais uns minutos na rua. Eu deveria ter percebido que era um bom negócio.
Todos os sinais estavam ali, bem na frente do meu nariz, mas meus três graus de
miopia, que vieram a público muitos anos depois, já começavam a produzir os
seus efeitos. Enveredei para o rumo errado.
Por volta dos doze anos, me divertia com
brinquedos que passavam absolutamente despercebidos pela maioria, como uma
antiga máquina de escrever Olivetti, que suponho ter sido do meu avô materno.
Era absurdamente pesada, invariavelmente empoeirada, e não tinha algumas
teclas, o que fazia eu machucar meus dedos para apertar o “d” ou o “r”, mas não
me impedia de continuar produzindo meus jornais, poesias e outros escritos que
ninguém viria a ler.
Pouco tempo depois, desenvolvi um estranho
prazer em passar as tardes na biblioteca de um tio, um lugar com pouca luz e
muita umidade, cheio de livros esquecidos, amarelados, muitos em línguas que eu
não entendia, mas com um cheiro de passar dos anos que me fascinava,
especialmente quando encontrava algo inadequado para a minha idade. Com meus
hormônios esperando ansiosamente para se transformarem em espinhas e poluções
noturnas, nem preciso dizer que qualquer título com uma mínima insinuação
sexual fazia enorme sucesso naquelas tardes,
arrebatando este pobre leitor como mosca em teia de aranha, sem chance alguma
de escapar.
O culpado pelo meu nascimento |
Mesmo sem resultados expressivos por anos a
fio, meu pai surpreendentemente não desistiu de me tirar do banco, ao que sou
muito agradecido. Foi ele que me deu todas as camisas do Grêmio que tenho, e
que uso com muito orgulho. Otimista, é ele quem sempre me aconselha a fazer
exercícios com maior frequência, levantando motivos nobres, como ter músculos
para carregar o Antonio, e faz eu voltar pra casa com um plano infalível de
correr três vezes por semana, a começar, sem falta, na semana que vem. É com ele
que gosto de assistir esportes e fazer minhas perguntas idiotas, às quais ele
responde com informações detalhadas de nome, número e posição do jogador, bem
como comentários generalizados sobre os times em que ele atuou e uma avaliação
informal se o cara é craque ou perna-de-pau.
Entretanto, muito mais do que tentar me
ensinar onde e como chutar a bola, meu velho me ensinou que ser pai é como ser
um técnico da vida. É treinar seu filho para a vida adulta, doa o que doer.
Ele, mais do que ninguém, me ensinou que o jeito certo de vencer é com estudo e
trabalho, e não com sorte ou indicações. Deu tudo o que tinha e o que não tinha
para eu crescer forte, corado e fluente em inglês, mas a partir de um certo
momento me jogou para fora do ninho, pra que eu aprendesse a voar por conta
própria. Até hoje monitora, com olhos atentos, se estou bem, se estou feliz,
mas mantém uma distância segura, para que eu seja dono do meu nariz e do meu
destino.
Divido tudo isto porque é do meu pai o
comentário mais recente que recebi aqui no blog.
Ele publicou logo abaixo do texto “Querido filho, ou filha”, uma carta que
escrevi ao Antonio. E ali, em poucas palavras, reconheci o DNA da minha
família. O código genético e ético que tive a sorte de herdar. E vi um belo
resumo de tudo o que quero passar para o meu filho.
“Querido neto Antonio, você veio completar
meu time favorito. Você, Dudu, Lipe, Quique e eu vamos formar um timaço.
Pressinto que ao crescerem deverão me deslocar para o gol, onde, certamente,
vou ajudá-los com muita tenacidade a fazerem muitos gols de amor ao próximo,
honestidade, decência, profissionalismo, amizade... Você é o caçula, o fofucho
da hora, seja bem-vindo ao nosso clã. Quem sabe a vida não nos reserva outras
surpresas e será você aquele que vai nos ensinar o que é o verdadeiro amor e o
real sentido de viver.”
Obrigado, pai, por estas
palavras. E por tudo mais.
The coach
When
I was little, my father took me to a soccer school. I have no idea why, but I
stood there, stuck like a mule, and there was not a thing in the world that
would make me go in the court with the other kids. I remember that day vaguely,
but the reason why I didn’t want to play is one of those mind mysteries that
not even hypnosis or regression would solve. I’m sure I will die without
knowing it.
Now
I see that I lacked vision. At five, I should have concluded that being a
soccer player was the best future one could have. Living in Europe, driving
fancy cars, picking up women like fruit on the market, earning huge amounts of
money. And even if you are not able to pronounce words correctly, you can still
have all this.
Being
a soccer player was the dream of all my friends, and they practiced very hard
every day, at any opportunity. They skipped classes just so they wouldn’t have
to quit the game started during the break. They got in trouble with their
mothers because they would always keep playing until late in the streets. I
should have noticed it was a good deal. All the signs were there, right in
front of me, but my myopia, which was disclosed many years after that, had
already started blurring my capability of seeing ahead. I came over the wrong side.
When
I was around twelve years old, instead of enjoying soccer balls, I had fun with
toys that would be missed by most, like an old Olivetti typewriter machine (that
I suppose belonged to my maternal grandfather). It was absurdly heavy, invariably
dusty, it missed some keys, which made me hurt my fingers to type “d” or “r”,
but it didn’t stop me from continuing producing my newspapers, poetry and other
pieces of writing no one would ever read.
A
little after that, I developed a weird pleasure for spending my afternoons in
the library of an uncle, a place with little light and lots of moisture, filled
with forgotten, antique books, many in languages I didn’t understand, but with
a scent of aging paper that fascinated me, especially when I found something
inappropriate for my age. With my hormones waiting to become zits and nocturnal
emissions, I don’t even need to say that any title with the smallest sexual
connotation was a big hit in those afternoons, catching that young reader as a defenseless
fly in a spider web, no chance of escaping.
Once
in a while, my parents wisely removed me from that bubble of luxury and
enrolled me in tennis classes, swimming classes, capoeira classes, guitar
classes, in a fairly successful attempt to turn me into a normal kid. My
father, who would have an invaluable sport skills legacy to pass on to a more
athletic son, was accordingly raising that teenage boy (me), which was
undoubtedly his heir, because of the physical similarity, but had unfortunately
inherited some of his mother’s subversive genes (my mother has always been
addicted to dangerous substances like poetry and philosophy).
Even
with low or no chance of success at all, my father has never given up on trying
to make me leave the bench, to which I am very grateful. He is the one to give
me all my soccer team jerseys, which I wear very proudly. Optimistically, he is
the one to advise me to exercise more often, pointing out some noble reasons,
like “you need muscles to carry Antonio”, and makes me come home with an infallible
plan to start jogging three times a week, although I always delay my start day
to the next week. It’s with him that I like watching sports and making my
stupid questions, to which he answers with detailed information about name,
number and player position, as well as general comments on the teams in which
they have been in and an informal evaluation of how good of a player they are.
Still,
much more than simply just teaching me how and where to kick the ball, my
father taught me that being a father is like being a life coach. It’s training
your child to adult life challenges, despite the pain. My father, better than
anyone else, taught me that the right way to succeed is studying and working
hard, instead of counting on luck or favoritism. He spent every cent he had and
even some money he didn’t have so that I could grow up strong, healthy and
fluent in English. However, at a certain moment he threw me out of his nest, so
that I could also learn to fly on my own. Until now he is always carefully
monitoring if I am happy, but he keeps a safe distance, so I can be my own man.
I’m
sharing all of this because it’s from my father one of the most outstanding comments
I got here on this blog. He published just below my post “Dear son, or daughter”,
the letter I wrote to Antonio. In his comment, in just a few words, I
recognized the family’s DNA. I could see not only the genetic code, but also the
moral code I was lucky to inherit. He wrote a beautiful summary of everything I
want to pass to my son. (PS: Dudu, Lipe and Quique are my father’s other
grandsons, my nephews, Antonio’s cousins).
Here
it goes:
“Dear
granson Antonio, you came to complete my favorite team. You, Dudu, Lipe, Quique
and I are going to make a great team. I foresee that, as you guys grow older,
you will rather put me as a goalkeeper, where, certainly, I’m going to help
you score lots of goals like respecting others, goals of honesty, decency,
professionalism and friendship. You are the youngest grandson, the new cute
one, welcome to the club. Who knows life might bring other surprises and it may
be you the one to teach us what is true love and the true meaning of living.”
Thank
you, dad, for these words. And for
everything else.
Tradução: Mariana Casals
Tradução: Mariana Casals
Como sempre, lindo este post!!! Um beijo grande e continue escrevendo desta maneira cativante!
ResponderExcluirVocê me faz chorar com seus posts! :)
ResponderExcluirVocês são lindos.. família linda!
Beijo gostoso no Antonio!
Vanessa (e Alex)
Ala maula tcê! Tuas palavras me deram um baita pialo que me deixou estropiado. Dos meus olhos saiu mais água do que de chaleira furada.
ResponderExcluirQuem tem que agradecer sou eu por ter um rebento como tu - um filho amigo e guapo, um marido e pai que nunca refuga, um profissional que laça até no escuro e, se revelando um escritor, que maneja as palavras como ginete de potro.
Macanudo tchê.
Aquele abraço deste indio velho que tem muito orgulho de tí.
Solange, obrigado. Continuarei escrevendo.
ResponderExcluirVanessa, que bom que está lendo. Tentarei fazer você chorar menos e rir mais. :)
ResponderExcluirObrigado, pai.
ResponderExcluirFabio, como vc escreve bem! Parabéns pelo blog; já tens uma leitora assídua. Bj
ResponderExcluirObrigado, Luciana.
ResponderExcluirMuito legal e bonito. Parabens!!
ResponderExcluirObrigado Cristiano. Abraço
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