segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

Pegue um bom jacaré

Verão é sinônimo de praia. E praia, para mim, é sinônimo de pegar jacaré.

Não que eu não aprecie o interminável cardápio de quitutes anunciado aos berros pelos ambulantes. Sou consumidor voraz de queijos, picolés e milhos de origem desconhecida e higiene questionável. Porém, mesmo na mais deserta das praias, onde se pode ouvir o mar em vez dos slogans do vendedor de empada, há um item que não pode faltar: uma onda, uma marola que seja, para pegar um bom jacaré.

Digo isso porque talvez alguns tenham sentido falta de um texto de Natal neste blog. Em um ano tão marcante, com tanto para refletir, havia material de sobra para uma mensagem especial no mais universal dos feriados cristãos, mesmo que não fosse segunda-feira. Porém tenho uma justificativa para minha ausência. É que 2011, para mim, tem sido como se eu estivesse em um imenso jacaré. Um jacaré de doze meses. E como inventei de pegar uma onda grande, acabei tomando um caixote bem no final.

Na semana passada, retornei de uma viagem e encontrei o Antonio com febre em casa. “Acho que é saudade do papai”, brincou a Ana, com aquela preocupação no olhar que já conheço bem. Foram 24 horas com temperatura acima de 38 graus. Os resultados dos exames de sangue e urina vieram bastante alterados. Quando percebemos, em plena semana anterior ao Natal, estávamos internados em um hospital.

Parêntesis para os fãs de House: o Antonio estava com uma infecção urinária importante, com suspeita de que tenha atingido os rins. Está sendo tratado com doses equestres de antibiótico, devidamente injetadas no bumbum. No início, passava de duas a três horas magoado após a espetada, fazendo um bico tão irresistível, que dava vontade de fotografar. Agora, experiente, grita apenas no momento da agulha, depois mia por uns minutos e volta a cair na gargalhada.

Com exceção dos bicos fofos, os dias de hospital foram um martírio. Ironicamente, naquela semana eu havia escrito algo sobre não querer voltar ao passado e, logo depois, tudo o que eu desejava era retornar aos momentos sem injeções, sem enfermeiras, sem dor. Ver meu filho sofrer novamente, nos mesmos moldes que vi nos seus primeiros meses de vida, serviu para me acordar. Criar um filho, especial ou não, é uma subida constante. O prêmio por um degrau vencido é outro degrau a esperar.

Tivemos alta na manhã da véspera de Natal. Iríamos poder passar o feriado com a nossa família, no calor de casa, o melhor presente que Papai Noel poderia providenciar. A medicação continuaria sendo feita em domicílio, até o Antonio conseguir mandar todas as bactérias embora. A febre também deu trégua. O sorriso do meu banguela voltou a dominar.

Aliviado, mas exaurido pelo susto e pela pouca maciez do sofá do hospital em que dormi por três noites, não tive forças para escrever um texto de Natal. Não seria justo nublar uma data tão querida com uma chuva que só atingiu o meu telhado.

Porém, assim como se pode tirar energia de lixo, consegui extrair algo de bom desses dias de internação. Vi minha mulher e eu lidando com as dúvidas e os medos com movimentos mais conscientes. Percebi que estamos mais confiantes, lutando com mais eficiência, tomando as decisões certas mais rapidamente. Em vez de aceitar as opiniões dos médicos passivamente, dialogamos com eles e tomamos as rédeas das decisões. Intervimos o tempo todo a favor do nosso filho. Exercitamos, literalmente, o que é ser responsável por alguém. E acredito que nos saímos bem.

O decorrer deste ano foi instável e borbulhoso, mas foi também inesquecível. Sem dúvida, foi a onda mais forte que a Ana e eu já pegamos. Ainda estamos meio tontos com o nosso caixote, ainda estamos com os corpos arranhados. Por um momento, deixamos todos ao nosso redor preocupados, mas felizmente conseguimos desafogar. E como crianças em um verão bom, já estamos nadando de volta para o fundo. O ano novo está chegando. Temos outro jacaré para pegar.

Um bom 2012 a todos.

Fábio, Ana e Antonio.

The Underwater Project, Mark Tipple - www.theunderwaterproject.com

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Férias de mim


Tenho um amigo que foi de Brasília ao Rio de Janeiro a pé. Um louco. Embarcou em um projeto profissional – andar por 100 dias, passar por mais de 100 cidades e registrar a situação dos esportes no Brasil –, mas tenho certeza que, enquanto queimava as solas dos tênis e as batatas das pernas país adentro, caminhava também para o seu próprio interior. Fez uma viagem pessoal.

Lembrei disto neste mês em que meu filho foi à praia pela primeira vez. Ele voou para mil e tantos quilômetros de mim. Porém, mesmo arrependido por não ter me organizado para acompanhá-lo, aproveitei para também fazer uma viagem para longe. Tirei férias do corre-corre que é ser um pai de família e visitei, por alguns poucos dias, a vida que tinha antes de casar e colocar um bebê no mundo. Voltei a um tempo distante, em que domingos ainda eram feitos para dormir.

Sempre que retorno a um lugar que não vou há anos tenho dificuldade de encaixá-lo perfeitamente no cenário deixei guardado na memória. As árvores, as casas e muitas vezes até as pessoas estão paradas, localizadas nas mesmas coordenadas, mas a cena toda, por alguma razão que não sei explicar, parece ter perdido o verniz. A única exceção talvez sejam os cheiros. Estes sim dão vida ao passado. Cheiros são o melhor meio de transporte para um tempo feliz.

As minhas férias das trocas de fraldas e das idas ao supermercado, em que voltei para os meus vinte e poucos anos, não foram diferentes. Tive mais uma vez essa sensação de que tudo em volta estava meio desbotado. Procurei os cheiros, mas encontrei apenas o azedo da cerveja, e confesso que ultimamente ando pendendo para os aromas do vinho. Talvez isso ocorra porque sempre tirei da vida, na idade certa, o máximo que ela pode me dar. Tenho carinho pelos dias que passaram, mas o agora me atrai muito mais do que a cor amarelada dos momentos que ficaram para trás.

Em compensação, enquanto meu filho se sujava de areia, eu cheirava diariamente seu travesseiro. Dormia todas as noites no lado oposto da minha cama, o lado que preserva o perfume da minha mulher. Trabalhava muito. Lia bastante. Procurava me ocupar, na esperança de apressar o tempo. Contava as horas para ver a minha família encher a casa de barulho e alegria novamente.

No fim, apesar de ter tirado alguns preciosos dias para mim, estava cansado de caminhar sozinho. Foi então que lembrei do meu amigo e da sua aventura a pé pelas estradas. Imagino que ele deva ter gostado de chegar tão longe, que deva ter achado divertido ir a lugares esquecidos, mas, nos últimos passos, tenho certeza de que estava com uma vontade imensa de voltar para a sua casa, para a sua cama, para o seu dia-a-dia.

Foi assim que me senti quando minha mulher e meu filho me deixaram livre para viajar, mesmo que fosse apenas internamente. Fui contente visitar o meu ontem, mas só me senti em casa quando retornei para a minha realidade atual. Não quero pintar um quadro mais bonito do que é. Minha vida é cheia de problemas, como a de todo mundo. Mas nessas férias de mim, percebi que não quero estar em outra pele, não quero estar em outro tempo. No desembarque do aeroporto, quando avistei minha mulher chegando com meu filho no colo, meu coração disparou. Ter saudade do presente é o mais próximo que se pode chegar de ser feliz.

segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

Antecipação

Depois de relutar por meses, miro o livro na estante do meu quarto. Está do jeito que eu deixei: meio escondido, quase o último da fileira, com sua capa vermelho sangue, ironicamente adequada para uma história que um dia me encantou, mas que hoje me faz sofrer.

Chego a passar os dedos por uma pequena seleção de livros em frente àquele. Outras leituras com as quais me envolvi anteriormente e que gosto de manter dormindo ao meu lado. Porém, desta vez não estou no quarto em busca de reencontros fáceis. Quero uma frase específica daquele livro dolorido. Uma linha perdida naquelas páginas que tenho evitado desde que o meu filho veio ao mundo – e trouxe com ele todas as incertezas incluídas no pacote de uma criança especial.

* * *

Não tenho a menor ideia do que acontece quando as energias do sol e da lua entram em oposição entre a nona e a terceira casas do meu signo. Não entendo porque isso determina que eu deva rever minhas convicções, usar roupas de cor roxa ou adotar como número da sorte justamente o 7 ou o 33. Meus miolos mais fracos até se divertem com as previsões dos astrólogos, mas minha massa cinzenta é mal humorada e acaba com a palhaçada antes que eu acredite que encontrarei um novo amor ou que uma catástrofe está prestes a acontecer.

Leio o horóscopo para rir. Não acredito que minha personalidade tenha sido moldada pela posição das estrelas no dia do meu nascimento. Nunca fiz mapa astral. Cigana, para mim, é fantasia de carnaval.

Porém, devo confessar que em alguma ruela pobre da minha alma reside um homem que desconfia da inexistência do acaso. É misticismo barato, eu sei, mas às vezes me pego pensando que podemos, sim, ter um caminho desenhado. Algumas coincidências parecem mais do que coincidências. E fico me perguntando se foi destino ou mero acaso.

Não tenho a resposta. Só sei que algum dos dois acionou os seus contatos para que eu entrasse numa livraria, poucos dias depois de descobrir que a minha mulher estava grávida, e me deparasse com um livro chamado O filho eterno.

Fiquei impressionado pela extensa lista de prêmios exibidos na capa. Descobri que se tratava do relato autobiográfico de um pai – o escritor Cristovão Tezza – sobre o nascimento do seu primeiro filho. Na dedicatória, havia um simples Para Ana, o mesmo nome da minha mulher. A história começava quando o autor tinha 28 anos. Eu havia acabado de fazer 29, mas àquela altura já estava completamente absorvido por tantas coincidências. Queria ler o livro ali mesmo, em pé, na livraria. Apenas um detalhe me freava: o filho do autor nasceu com Síndrome de Down.

A notícia da paternidade domestica até o mais bruto dos homens. Toma conta, muda as nossas ações e reações. Meus pensamentos estavam todos voltados para a saúde do meu filho e da minha esposa. A simples palavra síndrome me causou repulsa. Queria distância de qualquer assunto que, por azar ou superstição, pudesse atrair algum mal.

Devolvi o livro para a prateleira e voltei para casa. Achei que a leitura seria pesada demais para o período da gestação e poderia ter um impacto negativo em mim. Tentei esquecer, considerei algumas indicações para ler, mas a história do pai do menino com Down insistia em ecoar na minha cabeça. Como sempre, com vergonha de dar atenção para bobagens míticas, rolei na cama refletindo sobre acasos e destinos. Não era possível que eu tivesse parado precisamente em frente àquele livro sem nenhuma razão. Como uma vítima de hipnose, estava completamente rendido. No dia seguinte, retornei à livraria, peguei o livro e, antes que eu pudesse desistir, paguei.

* * *

Depois de relutar por meses, miro o livro na estante do meu quarto. Quando o li pela primeira vez, a vida ainda era simples. Devorei página por página, não conseguia parar de ler. Lembro de me emocionar com o sofrimento daquele homem. Ao mesmo tempo em que ele não escondia a indignação por ter um filho “retardado”, juntava forças para tolerar as idas aos médicos, dava um jeito de digerir as próprias frustrações e, apesar de toda a raiva e toda a dor, talvez por causa delas, finalmente encontrou a inspiração para deslanchar a sua carreira de escritor.

Meus olhos enchiam-se d’água. Eu lia com a distância e a pena de quem nunca passou por uma experiência parecida. E não imaginava, nem por um segundo, que estava lendo a exata descrição do que iria me acontecer. O autor foi meu vidente de araque. Acertou sem querer.

Apesar da síndrome do Antonio não ser Down, o luto dos pais, os sinais morfológicos e as terapias possíveis para qualquer desordem genética são incrivelmente semelhantes. Implantação baixa das orelhas, hipotonia, cardiopatia: os termos estavam todos no livro, mas não os memorizei. Cheguei à última página com o coração despedaçado, porém confiei na imunidade dos que pensam positivo. Se desviasse a cabeça daquilo, nada iria me acontecer.

Hoje, quase um ano depois do nascimento do Antonio, tive que fazer um esforço imenso para folhear o livro, em vez de jogá-lo pela janela. Logo nas primeiras linhas, vi que tudo tinha adquirido um novo sentido. Agora eu sei, pensei, o que ele quis dizer. Não achei a frase que estava buscando. Fui me perdendo no meio das páginas, lambendo as feridas da minha própria história.

Encontrei, porém, um trecho bem mais adequado a esse texto. Um poema que o autor escreveu antes do seu filho nascer e cujos versos dão a sensação de que ele anteviu o problema, de que viveu – como eu – algum tipo de antecipação inconsciente. O próprio escritor rejeita a poesia. Odeia a ideia de premonição mítica. Prefere o azar, o mero acaso, mesmo que isso torne tudo mais insuportável.

Entendo a revolta dele. Também senti raiva do gosto açucarado dos textos que escrevi enquanto esperava pelo meu filho. A chegada do Antonio foi um golpe brutal. O pai inocente e esperançoso que habitava em mim agonizou, entrou em coma profundo, mas conseguiu sobreviver. Nos dias difíceis, é ele quem junta os cacos, limpa o sangue e diz que a vida é assim mesmo, só nos resta continuar a viver. Quanto ao acaso e ao destino, resolvi tirar proveito deles. Se eu não tivesse o Antonio, nunca teria tanta inspiração para escrever.



Segue o poema retirado do livro O filho eterno, de Cristovão Tezza:


“Nada do que não foi
poderia ter sido.
Não há outro tempo
sobre esse tempo.

Amanhã e amanhã
é uma escada curva.
Ninguém abre a porta
ainda em modelo.
Hoje ouvimos os ratos
roendo o outro lado.
Ninguém chegou lá,
porque hoje é aqui.

Mas o sonho insiste
o sonho transporta
o sonho desenha
uma escada reta.

Quando cortas o pão
o depois-de-amanhã
não te interessa.
Mesmo que sabes:
todas as forças
estão reunidas
para que o dia amanheça.”


Curiosidade (ou acaso, ou ironia do destino): momentos depois que escrevi este texto, fui jantar na casa da minha mãe. Sem ter ideia do que eu andava escrevendo, uma das minhas irmãs se aproximou de mim e disse: passei numa livraria e encomendei um livro para você. Ganha um doce quem adivinhar qual era o título.

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

Odeio perguntas cretinas

Bastidores: este texto nasceu da enquete Post sob Encomenda, realizada neste blog há alguns dias. Havia quatro opções de títulos para votação e eu tinha três belas ideias para escrever. Quis o destino – ou melhor, quiseram 30 eleitores – que o post se chamasse “Odeio Perguntas Cretinas”. A única opção para a qual eu não tinha me preparado. 

Mas lá vai. Promessa feita é promessa cumprida. Próximo Post sob Encomenda em janeiro. 

Odeio perguntas cretinas 

“O pai dele é coreano?”, pergunta uma senhora à minha mulher, no corredor do supermercado, referindo-se aos olhos puxados do meu filho Antonio. A Ana responde com um simples não e segue olhando as ofertas do dia. 

Curiosa, a senhora arrisca novamente: “Então é japonês?”. Apesar da inconveniência, minha esposa faz um esforço para esboçar um leve sorriso e nega pela segunda vez, ainda de forma bastante polida. 

A partir deste momento, o grupo desuniforme de quase sete bilhões de seres vivos que chamamos de humanidade divide-se em dois. Os mais agraciados pela seleção natural de Darwin, que desde o tempo das cavernas conseguiram solucionar problemas muito complexos, como descobrir o fogo, rapidamente perceberiam a inadequação daquelas indagações, ainda mais quando se dirigiam a uma mãe com bebê de colo, alguém que mal tem tempo para almoçar, muito menos para ficar de papo enquanto escolhe os tomates na seção de hortifruti. Entretanto, uma linha científica alternativa suspeita que a outra parcela do grupo chegou a esses tempos modernos por pura questão de sorte, ou por acaso, talvez comendo restos de dinossauros e mamutes caçados pelos outros, pois, parece, sobreviveu ao paleolítico, atravessou o neolítico e circula até hoje por aí – nos corredores da Câmara, do Senado e dos supermercados –, sem se dar ao trabalho de desenvolver a capacidade de raciocinar. 

A senhora em questão, indubitavelmente, faz parte da segunda metade do grupo. Incansável, entretida com a brincadeira, ela resolveu testar seus dotes de adivinhação uma terceira vez, questionando se o pai do Antonio era chinês, ao que a minha mulher, desta vez mais ríspida, respondeu com uma explicação genérica de que nossa família tem os olhos pequenos e se afastou da interrogadora antes que ela percorresse todas as demais nações do continente asiático com suas suposições. 

Os dicionários chamam de cretino o indivíduo que tem grave deficiência mental. Que me perdoem Aurélio, Houaiss e outros senhores das palavras, mas esta definição está completamente incorreta. Eu, como pai de um filho com este problema, afirmo, assino embaixo e reconheço em cartório que pessoas como o Antonio podem sofrer de tudo, menos de cretinismo. Hoje, ao observar alguém com deficiência, em vez de notar os movimentos descoordenados e os pensamentos desorganizados, vejo um cérebro lutando com todas as forças para funcionar, muitas vezes com mais afinco e dedicação do que nós, os normais, o fazemos, seja lá o que a palavra normal signifique. Cretinice mesmo é ter todo o intelecto disponível, mas usá-lo com parcimônia. É ter preguiça – e não inabilidade – de pensar. 

No tempo em que tive a oportunidade de dar aulas, aprendi a respeitar o valor de uma dúvida, por mais estúpida que pareça. Quando o objetivo é obter um novo conhecimento, não há censura para as perguntas. O problema é quando, espertos que somos, acreditamos já sabermos a resposta e, sem querer, ou querendo, deixamos esta pressuposição escapar. A chance de estar certo existe. Porém, não se pode perder de vista o risco de cometer um erro presunçoso, uma gafe desrespeitosa ou simplesmente de se passar por cretino, quando existem formas bem melhores de formular as mesmas questões. 

Perdão pela teoria maçante de professor antiquado. Você que dormiu no terceiro parágrafo, por favor, acorde. Chegamos aos exemplos práticos. Vale a pena anotar. 

Não há nada mais cretino do que vislumbrar uma barriguinha em uma mulher e disparar “Para quando é o bebê?”. Por mais que você acredite que ela não tenha exagerado no chope com frango a passarinho, existe a possibilidade de não haver um filho ali dentro. É mais prudente comentar algo genérico sobre crianças. Se ela estiver grávida, certamente dirá. 

Ligar para um conhecido no meio da tarde, num dia de semana, e perguntar “Você está no trabalho?” também é cretino. Às vezes tenho vontade de responder que não, que estou no motel, gabaritando o Kama Sutra, mas que a posição da catapulta não impede de falar ao telefone. Não importa o grau de intimidade, pergunte apenas se a pessoa pode atender. 

Perguntar quanto alguém pagou por um carro ou apartamento: muito cretino. Deixa implícito que você tem uma noção do valor e que, na verdade, está avaliando se a pessoa fez bom negócio ou não. Ou pior, sugere que o que você realmente quer saber é o poder de compra do seu amigo, fingindo não fazer uma comparação interna com as suas próprias posses e utilizar o resultado da conta da maneira menos nobre possível: para se sentir melhor ou pior. 

A lista é grande. Não quero me estender. Como exprimi antes, a cretinice não está na curiosidade, mas na ilusão de saber o que a outra pessoa irá dizer. O segredo é segurar a língua a tempo e não revelar a sua hipótese. É a única maneira de se proteger. 

Há alguns anos, uma amiga minha cruzou na rua com uma conhecida dos tempos de escola. Elas se abraçaram com saudades, deram gritinhos, perguntaram como andavam as coisas, se abraçaram de novo, celebraram com nostalgia aquele encontro inesperado. A colega, confiando na antiga cumplicidade de amigas de colégio, provavelmente sentindo o prazer de ter superado algum trauma de infância, contou animadíssima que finalmente tinha tomado coragem e feito uma cirurgia plástica. Minha amiga, sem pensar, logo soltou: “Não acredito! No queixo?” O sorriso da colega desabou e quebrou no chão. Perplexa, em choque, tateando o queixo com a mão, a garota respondeu: “Não."

segunda-feira, 28 de novembro de 2011

Coração entreguista

Algumas dores são tão intensas, que o corpo precisa de um tempo para se manifestar. Elas não se revelam no instante da pancada. Não chegam estabanadas, fazendo alarde. Dores de verdade se aproximam em silêncio e esperam pacientemente o telefone sem fio das nossas células nervosas fazer a notícia correr. As cordas vocais congelam de medo. Os pulmões suspendem a respiração. O coração, entreguista, bate desesperado, nem tenta disfarçar. Só depois que todos os sistemas estão devidamente alarmados, a dor faz sua entrada triunfal, aguda, insuportável. Até os mais resistentes às vezes se rendem e deixam escapar uma lágrima.
 
Deve ter sido deste tipo a dor que atingiu uma amiga da minha mulher, ainda no tempo de adolescente. As duas papeavam tranquilas, andando por uma rua meio escura, mas ainda era cedo da noite, estavam perto de casa, não havia motivos para preocupação. De repente, surge um estranho por trás delas. O homem dá uma violenta trombada na menina e sai correndo, aparentemente sem levar nada. Assustadas, sem entender o que havia acabado de acontecer, as duas continuaram o trajeto com um pouco mais de pressa, até que a garota atingida começou a se sentir mal. Só então minha esposa percebeu que sua amiga estava sangrando – e muito. A garota havia levado uma facada profunda nas costas, mas o cérebro, que não é besta, foi avisando aos poucos. Achou melhor ir devagar.

Sempre que a Ana e eu contamos que temos um filho especial, uma das primeiras perguntas que nos fazem é se descobrimos durante a gravidez. Não, não descobrimos. Fizemos o melhor pré-natal que pudemos. Realizamos todos os exames. Tomamos todos os cuidados. Tivemos até a chance de repetir algumas imagens, só pela alegria de rever o nosso bebê ou conferir alguma informação. Com exceção de um ganho de peso mais lento nos últimos meses de gestação, nada levantava suspeitas. Estávamos preparados para tudo o que nos alertaram, para todas as possibilidades corriqueiras, mas nosso destino estava decidido a desviar o trilho e fazer o nosso caminho rumar para outros lados.

Até hoje nos questionamos se gostaríamos de ter sabido com antecedência. Perdidos no mundo das hipóteses, imaginamos que teríamos nos preparado para receber o Antonio com mais serenidade. Talvez tivéssemos levado menos sustos, talvez o pós-parto tivesse sido menos traumático. Por outro lado, pensamos que a antecipação da dor poderia entupir as nossas cabeças de preocupações além das usuais e que isso apenas tornaria os últimos meses de gravidez ainda mais estressantes. A dúvida nos acompanhará para o resto das nossas vidas. A maior crueldade do tempo não é a sua passagem. É a impossibilidade de voltar.

O fato é que no mesmo dia em que tivemos a maior felicidade do mundo – ver o nosso filho pela primeira vez –, sentimos a maior dor das nossas vidas. Tomamos a nossa facada pelas costas. Meu sangue jorrou imediatamente. Em poucas horas, mergulhei num sofrimento abissal. A Ana, a exemplo de sua amiga da adolescência (que por sinal, sobreviveu ao ferimento), não reagiu ao impacto na mesma hora. Permaneceu impávida, concentrada, sem um pingo de lágrima, tentando fazer o Antonio mamar.

Demorou quinze dias para eu vê-la desabar. Conversávamos sobre nossos novos assuntos, sobre mais uma tentativa frustrada de fazer o Antonio pegar o peito. Ela virou pra mim, olhos já molhados e confessou o inconfessável: “no fundo, a gente sabe que ele tem alguma coisa, né?”. Chorou no meu colo. Choramos juntos. Desejávamos com todas as forças que ele fosse igual aos outros bebês, mas começávamos a perceber havia algo diferente. Choramos por medo de perder as esperanças. Choramos porque, contra a nossa própria vontade, estávamos começando a aceitar.

Não é preciso uma análise muito profunda para descobrir porque a Ana fugiu da dor, porque demorou tanto para extravasar. Quando não se tinha uma confirmação médica, quando não se tinha um exame definitivo, quando tudo não passava de suspeita, chorar era como se estivéssemos traindo o nosso filho. Era como se concordássemos com os prognósticos incertos e pouco animadores dos médicos. Como se estivéssemos abandonando a luta.

Hoje temos o diagnóstico e, ao contrário dos nossos medos de antes, não perdemos a esperança. A diferença é que em vez de a depositarmos na imagem de uma criança normal, apostamos nossas fichas em pequenas conquistas diárias. Aceitamos que o desenvolvimento do Antonio seja a passo de formiga, mas é pra frente que queremos andar. A dor de descobrir que seu filho é especial é imensa, não desejo a ninguém. Mas, pelo menos no meu caso, acho que foi bom não ter sido avisado com antecedência. Pois quando eu fiquei sabendo, já estava irreversivelmente apaixonado pelo meu filho. O cérebro viu que a dor seria grande, ele quis se desesperar. Mas o coração, num raro momento de sensatez, disse: calma, já vai passar.


segunda-feira, 21 de novembro de 2011

Toys R Us

Uns diriam que é sorte. Outros, que é azar. O fato é que faz algum tempo que trabalho ao lado de um shopping. É só atravessar a rua e entrar.

Na coluna dos prós, posso listar facilmente a presença de três ou quatro lugares decentes para tomar café, uma agência do meu banco, uma lotérica e uma livraria relativamente boa, que além de amenizar o tédio pós-almoço, nunca falha em salvar a minha pele quando esqueço o aniversário de alguém, o que acontece com uma frequência próxima ao sempre.

Porém o lado ruim é muito maior, muito mais sexy e muito mais envolvente. Shopping, que me perdoem os amantes de compras tementes a Deus, é obra do diabo. Pensem comigo. Que outro ser criaria um prédio em que as escadas rolantes fazem você andar quilômetros de um canto ao outro, em ziguezague, muitas vezes ao lado de esposas incapazes de seguir adiante sem parar em frente a cada uma das quatrocentas vitrines no caminho, apenas para você conseguir subir três pisos? Que outro ente do mal seria capaz de elaborar algo tão aterrorizante quanto uma praça de alimentação? Um lugar onde você não só faz refeições sofríveis, mas também é obrigado a disputar espaço, a cotoveladas, com um estranho sentado a 15 centímetros de distância, e que lhe dá um golpe nas costelas toda vez que vai cortar o bife à milanesa. Isso sem contar a presença garantida daquele outro indivíduo em pé atrás de você, com uma bandeja nas mãos, contando quantas batatas fritas faltam para você chispar dali e finalmente ceder o seu lugar para que ele se sente.

Shoppings, idênticos da Malásia ao Malauí, também têm a incrível capacidade de hipnotizar as pessoas, que não se incomodam em perder dias inteiros de viagens preciosas – e dispendiosas – entrando na Zara, na Nike ou em qualquer outra loja, disponível em qualquer canto do mundo, só para conferir. Não estou tirando o meu da reta, não. Somo, em minhas poucas férias, incontáveis horas nas Galeries Lafayette, no Premium Outlet ou mesmo no Shopping Morumbi. Começo sempre com a intenção de não comprar nada, mas o diabo é bom no que faz, e criou o artifício de permitir que a gente só dê uma olhada, ou que a gente experimente só pra ver como é que fica. Termino o dia significativamente mais pobre e momentaneamente mais feliz.

Meu tormento não é tanto as lojas. Elas são, em certa medida (de fato bastante desrespeitada por uma importante parcela da população feminina), necessárias. O problema não são os apitos de senha na praça de alimentação. Nem as escadas rolantes que sempre descem quando quero subir. Nem os desocupados que vagam sem rumo, atentos às promoções, mas completamente desatentos às pessoas, às crianças, aos cadeirantes e a qualquer outro ser que venha na direção contrária. Tudo isso certamente alimenta a minha indignação com shoppings, mas não necessariamente são a causa dela. O que realmente me incomoda, mesmo sendo publicitário e tendo pleno conhecimento dos motivos e dos resultados da prática que me causa ojeriza, é a absurda antecipação das datas comemorativas promovidas pela publicidade e pelas metas de venda, mas materializada, sem exemplo mais ilustrativo, nas decorações de shopping.

Mal começa o mês de novembro e a maldita casa do Papai Noel já está lá, completamente pronta, rodeada por árvores de cinco metros de altura e adereços numa tenebrosa combinação de verde, vermelho, dourado e outra cor de livre escolha. A questão não é somente estética – apesar das lágrimas de muitas crianças, as mais sinceras neste quesito, comprovarem que a imagem de um senhor acima do peso, com maquiagem invariavelmente derretida, bufando sob um cobertor vermelho e coçando sua barba postiça, é geralmente assustadora. Entretanto o maior problema é que a decoração de natal finaliza o ano de forma completamente precipitada. Traz aquela triste sensação de fim de tarde no domingo. E a faz perdurar por dois meses, anunciando dia após dia que você não emagreceu os 10 quilos que prometeu, que você não deu uma virada na sua vida, que este ano está indo embora ordinariamente, como todos os outros anos anteriores, até que ele acabe de fato.

Outra imagem que me dá certa agonia – além dos algodões decorativos simulando neve em um país conhecido pelo seu verão de 40 graus – é a correria nas lojas de brinquedos. Sei o que é amar uma criança. Tenho um filho e mais cinco sobrinhos. A gente entra naquele mar de carrinhos e bonecas, imagina o brilho nos olhos de cada um deles e tem vontade de comprar tudo, em 10 vezes no cartão.

Mas se você me perguntar o brinquedo que eu mais recordo da minha infância, a resposta é uma inocente coleção de caixas de fósforos vazias que a minha avó juntava, para que tivéssemos o com o que brincar quando fizéssemos uma visita. Acredito que o real motivo era garantir que os netos mantivessem as mãos sujas nas caixinhas, em vez de carimbar as paredes brancas. Que seja. Missão cumprida. Pois eu ficava horas montando trens, caminhões, cidades e tudo o que minha mente conseguia inventar com aquelas caixas com cheiro de fósforo. Até hoje, quando sinto aquele cheiro, a lembrança da minha avó volta para me abraçar.

No natal do ano passado aconteceu algo parecido. Os pais, os avós e os tios dos meus sobrinhos, eu inclusive, estavámos todos muito preocupados em dar bons presentes, realizar os desejos, seguir à risca os pedidos das cartinhas. Uma das minhas irmãs, num misto de criatividade e praticidade, decidiu comprar algo mais simples e barato: boias de piscina, em formato de bote e baleia. A alegria das crianças foi tanta, que tive que encher as boias imediatamente, mesmo que eles não tivessem permissão para nadar àquela hora da noite. Brincaram no barco e na baleia inflável até adormecerem. Deixaram os brinquedos à pilha de lado. Preferiram os movidos a imaginação.

Quando descobri que seria pai de um menino, o primeiro pensamento que me veio à cabeça foi que teria companhia pra brincar. Projetei o Antonio com dois, três anos, correndo atrás de bola, andando de bicicleta, pulando na cama, deixando a casa um caos, levando brinquedos para lá e para cá. Inúmeras vezes imaginei o Antonio entrando no meu quarto, de fralda e camiseta, com algum cacareco nas mãos, às 7 da manhã do domingo, me convidando, com chupeta e sorriso no rosto, para acordar e brincar.

O Antonio, apesar de adorar uma bagunça e ter começado a se interessar por brinquedos com luzes e barulhos, até hoje nunca buscou, como seria esperado para um bebê de dez meses, um brinquedo com as mãos. A coordenação motora fina é uma das suas maiores dificuldades. E tarefas simples como pegar, segurar e soltar são imensos desafios. Por causa do reflexo nato de fechar as mãos, ele até consegue prender algum brinquedo leve por algum tempo, mas logo depois o solta, sem uma relação clara de interesse e desinteresse, muito mais pelo puro instinto de voltar abrir as mãos.

Talvez por isso, as brincadeiras que mais o divertem são predominantemente sensoriais. Ele adora quando o pego no colo e faço aviãozinho. Morre de rir quando imito o relinchar de um cavalo. Fica hipnotizado quando saímos para passear, olhando o contraste entre o céu e as árvores. Relaxa, sorridente, quando sente o vento no rosto. Bate as perninhas sem parar quando nos arriscamos a nadar.

À medida que o natal se aproxima e verdadeiras multidões enrijecem as pernocas e emagrecem as contas bancárias dentro dos shoppings, eu me manterei fiel aos meus três ou quatro lugares decentes para tomar café em vez de me perder nas lojas de brinquedos. É claro que darei alguma coisa brilhante ou barulhenta para o Antonio. É claro que ficarei muito contente com os presentes que ele receber do Papai Noel. De alguma maneira, mesmo que não seja da forma clássica, esses brinquedos contribuirão para o desenvolvimento dele, disso não tenho dúvida. Mas além de ajudá-lo a desembrulhar os pacotes que o esperam debaixo da árvore, vou separar o fim de ano para ficar horas com o Antonio na piscina. Vamos abrir uma companhia aérea de tanto aviãozinho que faremos juntos. Vamos fazer piquenique embaixo de uma árvore bem grande. Vou esticar uma toalha macia na grama para ele poder rolar.

Tenho certeza que é esse tipo de presente que ele quer ganhar.

quarta-feira, 16 de novembro de 2011

Fala garoto

Minha mãe fala pelos cotovelos. Pelos dois ao mesmo tempo, se você deixar. A ciência ainda não comprovou que matraca sem freio é hereditária, mas não restam dúvidas que foi daí que eu herdei meu apreço por discursos, meu talento para dar com a língua nos dentes e minha necessidade de puxar papo com transeuntes de elevador.

Cresci em uma casa onde tudo era discutido, do local das próximas férias de verão a quem ficaria com o ventilador. Nunca experimentei a figura do pai lacônico, mirando de soslaio os filhos cabisbaixos e os obrigando a chamá-lo de senhor. Na nossa mesa a conversa rolava solta. E à medida que os anos passavam, fui aprendendo os benefícios de me tornar um homem familiarizado com as palavras. Arranjei até uma meia dúzia para convencer algumas garotas a me beijar.

Dizem que todo homem procura uma mulher aos moldes da própria mãe. E quando decidi casar com a Ana, a comparação foi inevitável. Ambas gostavam de moda. Ambas eram extrovertidas. Ambas falavam sem parar. Porém, minha mulher escondia uma mania, uma diferença fundamental, que fazia qualquer semelhança entre as duas se dissipar. Dentro de casa, na vida a dois, a Ana usa o silêncio para se comunicar.

Em nossos desentendimentos não há discussão. Quando algo a desaponta, ela simplesmente se fecha, feito flor. Eu perco o meu direito a beijos por tempo indeterminado, em uma espécie de castigo, sem direito a falar. Até que depois de algum tempo, sem antecipação, ela encosta o seu pé no meu, embaixo do cobertor, e ganho o meu beijo. Não é preciso falar, está dito nos olhos. O silêncio acabou. E não deixou palavras para machucar.

Desse diálogo mudo nasceu um bebê especial, em todos os sentidos que essa palavra pode ter. O curioso é que a síndrome do nosso filho não tem nome, não há um termo que possamos usar. E dos vários túneis escuros que estamos tendo que explorar, um dos que mais me assustam é a possibilidade do Antonio não falar.

Desde que comecei a escrever sobre a nossa vida, tenho recebido diversos relatos de pais de crianças que contrariam as previsões médicas, superam todas as expectativas e aprendem a andar, a comer sozinhas ou a usar a fala para se comunicar. Esse é o melhor apoio que podemos receber. A experiência de quem viveu na pele e sabe que esse rio é possível de atravessar. Enquanto não chega a idade de dizer papai e mamãe, o melhor que temos a fazer é falar com o Antonio o tempo inteiro, pronunciando as palavras em bom som, em bom português e a uma distância que ele consiga enxergar.

Não sei por onde perambulamos antes de vir a esse mundo. Não sei se temos a oportunidade de escolher a família na qual vamos nascer. Apenas sei que, se de fato tivermos essa opção, o Antonio fez a sua com inteligência. Escolheu um pai falante como a avó e uma mãe fluente em silêncios. Com palavras ou sem palavras, ele sempre terá alguém para conversar.

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Barulhos para ler - Noises to read

Querido filho, meu querido Antonio, o papai tem gastado horas, talvez já sejam dias, escrevendo para todo mundo, contando a vida para gente que a gente nem conhece, e, atrapalhado com esses e outros afazeres, tenho esquecido de escrever para você.

Hoje descobrimos que você não escuta de tudo. Que uma palavra como “sapato” pode soar como “apato” e que talvez, ainda não é certo, teremos que moldar um aparelho de audição para ajudar os seus ouvidos a fazerem o seu dever.

O papai disse aos quatro ventos que não se importaria com isso. Tentei me convencer de que uma deficiência auditiva seria o menor dos problemas, ainda mais uma perda moderada, como parece ser o seu caso. Mas a verdade é que fiquei triste, pois como pai, desejo dar-te asas. E sinto como se tivessem tirado algumas penas dessas asas que estou fabricando para você.

Por isso, meu filho, como não tenho certeza do que você anda ouvindo, resolvi descrever alguns sons que me fazem muito feliz. São ruídos que estão à nossa volta e que espero um dia você possa escutar por conta própria. Até lá, fica este pequeno registro. Um texto para ouvir. Barulhos para ler.

Você gargalha à noite. É imprevisível, como ver uma estrela cadente. E assim como nas raras vezes em que avisto um rastro de luz no céu, faço um pedido: ouvi-lo gargalhar novamente. Este fenômeno só acontece quando você está no colo, em sono profundo e com cabeça atirada sobre algum dos meus doloridos ombros. Sem aviso prévio, você solta um riso moleque, que mais parece um soluço, e sinto seu peito chacoalhar colado ao meu. Tudo se acaba numa fração de segundo, mas deixa aquela pergunta no ar: em que será que você está pensando? Imaginando mil histórias, ajeito o cobertor e aguento o seu peso por mais alguns minutos. Sonho bom não se deve interromper.

Você fala com suas chupetas. Na verdade, briga com as pobres coitadas. Às vezes, quando colocamos uma destas pequenas maravilhas na sua boca, você imediatamente a agarra com as duas mãos e, num ataque paradoxal, tenta arrancá-la dali enquanto a morde com todas as forças. Outra opção bastante comum é tentar engolir a vítima da vez por inteiro, se possível com alguns dos seus próprios dedos de sobremesa. Enquanto a luta se desenrola, sem chance alguma de vitória para a chupeta, você cantarola algo como nhóing, nhóing, nhóing, pausa, nhóing, nhóing, nhóing, pausa, nhóing, nhóing, nhóing, e assim por diante, até que se canse de maltratar a sua presa, como gato que deixa o rato de lado, todo arranhado e babado, em busca de algo novo para se divertir.

Você ronca. Sei que é um barulho pouco ortodoxo para se gostar, mas poucas coisas me dão tanta tranquilidade quanto estar distraído com TV, esperando você dormir, e de repente perceber que você não só está meio derretido na sua cadeira de balanço, mas também ressona como um urso em plena hibernação. É hipnótico. Paro de assistir o que estou vendo para assistir você.

Fora esses pequenos sons, meu filho, que parecem ordinários aos ouvidos, mas são preciosos para a alma, há pouca coisa que consideraria fundamental para viver. Desejo que você consiga e goste de escutar música. Desejo que perceba alarmes, buzinas e outros alertas que possam protegê-lo de algum perigo. E espero que algum dia você compreenda e repita os milhares de pa-pai que digo diariamente para você.

E quando chegar o seu aparelho auditivo, que vai abrir seus ouvidos sem filtros para sinfonias e agressões, desejo que continue surdo como uma pedra para eventuais comentários preconceituosos. A vida é dura, filhote, a gente ouve cada coisa. Não sei se estou preparado para te ver sofrer.

Mas cada coisa na sua hora. Agora o nosso foco são os sons dos animais e as cantigas de roda. Perdoe quando eu errar a letra. Perdoe quando eu desafinar. E tenha certeza, meu filho, que mesmo que você não escute nada, eu sempre cantarei para você.


Noises to read

Dear son, dear Antonio, daddy has spent hours, maybe days, writing to everybody, telling about our life to people that we don’t even know, and, jumbled by those and other things to do, I have been forgetting to write to you.

Today we found out that you can’t listen to everything. That a word as “cat” may sound as “at” and that maybe, it is not certain yet, we we’ll have to order a hearing device to help your ears do their job.

Daddy told everyone that he wouldn’t mind that. I tried to convince myself that a hearing deficiency would be the smallest of the problems, even so a moderate loss, as it appears to be your case. But the truth is that I got sad, because as a father, I wish to give you wings. And I feel like someone ripped off some feathers of those wings that I’m building for you.

That’s why, my son, as I’m not sure of what you have been hearing, I decided to describe some of the sounds that make me very happy. They are noises that are around us and that I hope that some day you can listen by yourself. Until then, here is this little list. A text made for listening. Noises to read.

You laugh at night. It is unpredictable, as seeing a shooting star. And as for the rare times that I see a flash of light up in the sky, I make a wish: to hear you laugh again. This phenomenon happens only when you are in my lap, in deep sleep and with your head thrown over one of my sore shoulders. Without previous warning, you let out a childish laughter, that seems more likely to be a hiccup, and I feel your chest wiggle next to mine. It all ends in a fraction of a second, but leaves that question up in the air: “I wonder, what are you thinking about?”. Imagining a thousand stories, I straighten the blanket and keep standing your weight for a few more minutes. Good dreams must not be interrupted.

You talk to your pacifiers. In fact, you argue with them. Sometimes, when we put some of those little wonders in your mouth, you immediately grab it with both hands, and in a paradoxal attack, try to rip it off while bitting with all of your strenght. The other pretty common option is trying to swallow the victim of the time at its whole, if possible with some of your fingers for dessert. While the struggle unwind, with no chance of winning to the pacifier, whatsoever, you hum something like “nhoing”, “nhoing”, “nhoing”, pause, “nhoing”, “nhoing”, “nhoing”, pause, “nhoing”, “nhoing”, “nhoing”, and so on, until you are tired of abusing your prey, like the cat that leaves the mouse aside, all scratched and drooled, in search of something new for fun.

You snore. I know it’s an unorthodox sound to like, but few things give me more tranquility as to be distracted by the TV, waiting for you to sleep, and suddenly realize that you are not only half-melted on your rocking chair, but also ressonates like a bear in full hibernation. It is hypnotic. I quit watching whatever is going on the TV just to watch you.

Aside from those sounds, my son, that seem ordinary to the ears, but are precious to the soul, that are few things that I consider fundamental in life. I wish that you be able to listen to some music and enjoy it. I wish you can perceive alarms, honks and other alerts that can protect you from some danger. And I hope that someday you can understand and repeat the word “daddy” that I say everyday to you.

And when your hearing device arrives, and open your ears to simphonies and aggressions, I wish that you keep deaf to prejudice comments. Life is tough, kiddo, we have to listen to unbelievable things. I don’t know if I am ready to watch you suffer.

But everything has its right time. Now our focus is imitating the sounds of animals and singing lullabies. Forgive me when I get the lyrics wrong. Forgive me when I go out of key. And please be sure, my son, that even if you can’t ever listen to a single word, I will always sing to you.


Tradução: Alexandre Marcílio

segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Acredite ou não

Cristãos, judeus, muçulmanos, ateus, macumbeiros, ou seja lá qual for seu deus, saquem suas armas. A guerra vai começar. As regras – sim, há regras – são simples. Primeiramente, você defende o que acredita, sem gaguejar e com convicção febril. Se for do tipo que gosta de holofotes, pode adicionar algumas tiradas irônicas aqui e ali, como se fosse um comediante de stand up. O importante é manter aquele ar pretensiosamente despretensioso e metralhar piadas ácidas e ofensivas sempre que possível. Seu oponente ficará no chão e seu rebanho, às gargalhadas, o presenteará com palmas, assovios e, quem sabe, até uma ovação em pé. Em seguida, na vez do outro atacar com sua fé absurda, para não dizer estúpida, finja que ouve atentamente a cada argumento, quando na verdade você procura por pontos fracos, com seu faro aguçado para incoerências teóricas, que serão estrategicamente usadas contra o pobre coitado na sua devida hora, na sua tréplica.

Vence quem insistir por mais tempo, já que a persuasão neste tipo de batalha é mera alegoria abstrata e nunca poderá ser alcançada. É fundamental que os cumprimentos iniciais sejam cordiais, como em todas as artes marciais, mas uma vez no tatame, vale humilhar, cuspir, chutar o saco, sequestrar, estuprar, dar tiro na cabeça, degolar e, se necessário, como fiéis guerreiros que somos, mesmo que seja contra todos os deuses em vez de a favor de um, podemos até lançar mão técnicas mais sofisticadas, como cobrir o próprio corpo de bombas ativadas e partir voluntariamente para o céu, ou inferno, caso acreditemos nessas coisas, em defesa da nossa causa e honra. Sim. Vale terminar com os miolos num canto e o corpo no outro. Só não vale dar o braço a torcer.

Frequentemente abro arquivos que chegam a mim por email, com fotos do pôr do sol e de montanhas nevadas, legendadas por incansáveis repetições das maravilhas criadas por Deus. Com um pouco mais de interesse, mas ainda pouco, leio artigos que me chegam a respeito da ciência e da comprovação, se não empírica, por óbvia dedução, da impossibilidade da existência de uma divindade suprema, não importa a religião. Meu cérebro decodifica e compreende sem nenhuma falha a informação que detemos até aqui. Porém minha mente, por livre e espontânea vontade, escolhe um dos muitos lados existentes, sem grandes preocupações com conceitos inexatos, como o que é certo ou o que é errado, e nos momentos em que acho que devo, volto minha atenção para dentro e busco auxílio, conforto e um pouco de paz na minha espiritualidade. Mudam os nomes, mudam os livros, mas as religiões e as filosofias de vida, como o ateísmo, não passam de ideias pelas quais nos apaixonamos. E com as quais escolhemos viver.

Quem gosta de futebol sabe muito bem o que é isso. Por influência dos parentes, dos amigos ou de um craque fazedor de gols inesquecíveis, logo nos primeiros anos escolhemos uma camisa para amar. A bandeira vira manto sagrado. O hino vira oração. Compramos suvenires. E como devotos em procissão, vamos todos os domingos ao nosso templo, ou para frente da televisão, para cantar nosso amor por aquele time, para fazer nossos rituais semanais de veneração e para cultuar nossos santos, que às vezes fazem milagres com um passe errado, e acabam salvando o jogo, no fim do segundo tempo, para alívio e alegria dos nossos corações. No dia seguinte, com a alma lavada, mas suja de maldade, humilhamos seres humanos que na maioria dos dias consideramos amigos, mas que hoje merecem ser punidos por vestirem verde em vez de vermelho. Os mais extremistas, uma minoria, assim como nas religiões, julgam-se em guerra santa e, num transe passional, resolvem evangelizar seus rivais à força, nem que seja com socos na boca e chutes na nuca.

Se clubes de futebol, que somam pouco mais de cem anos, são capazes de despertar o melhor e o pior de nós, imagine o que podem fazer conceitos como Deus ou Alá, que há milênios atracaram em nossas cabeças até então quase inabitadas, exterminaram os neurônios mais rebeldes, catequizaram os mais dóceis e, dia após dia, os obrigaram a podar nossos prazeres e a plantar culpas, até acreditarmos que prazer é pecado e culpa é redenção, uma ideia que balança, balança, mas não caiu até os dias de hoje.

Entretanto, se tempo de atuação for a medida de força e poder, os deuses da mitologia grega deveriam atrair mais gente que final de copa do mundo. Há inclusive o próprio deus do tempo, Chronos, que neste caso reinaria absoluto, provavelmente portando um Rolex dourado, maior que o Big Ben, em um dos pulsos. O tempo sim é um deus que vale a pena temer. É mais cruel do que todos os outros deuses já inventados pela imaginação do homem. E pra piorar, tem o cansativo hábito de nunca parar, nem que você peça muito, mesmo que você queira dar só uma palavrinha num momento de desespero.

O tempo é mesmo um deus impiedoso. Ontem, por exemplo, o Antonio fez nove meses. Já é mais vida fora da barriga do que dentro dela. E pra variar, por um lapso de atenção, por mais que tentasse aproveitar cada segundo, não vi o maldito do tempo passar. E olha que fiquei incontáveis horas de vigília, acordado de madrugada, enquanto meu filho decidia se chorava, se mamava ou se, em noites de sorte, eventualmente dormia esparramado no meu colo. Eu, cambaleando a cabeça de sono, não percebi que Chronos estava o tempo todo ali, fazendo o dia amanhecer e o corpo do Antonio esticar em progressão geométrica.

Nove meses. Eu deveria ter imaginado que o tempo suficiente para formar uma nova vida deveria ser mais do que o bastante para transformar a minha. Aprendi a trocar fraldas, a montar e desmontar carrinhos, a dormir com os olhos fechados e os ouvidos abertos, a distinguir choro de dor, de manha e de fome. Perdi cabelos, ganhei quilos. Depois perdi os quilos, mas infelizmente não ganhei os cabelos de volta. Caí de paraquedas em um mundo em que microretrognatia e traqueomalácia são palavras comuns. E para minha surpresa, em poucos meses estava fluente na nova língua.

Apesar de eu, como todos os pais, estar sempre com uma sensação de falta de tempo, esse deus maniqueísta, bom quando você não precisa dele, mau quando você quer dormir mais 10 minutos, faz questão de deixar seus rastros. As roupas do Antonio apertando, as papinhas engrossando, o peso aumentando, tudo é evidência clara de que o tempo está passando. Porém Chronos deve ter aprontado alguma para Zeus ou outro superior na hierarquia, porque lá em casa ele não tem o direito de fazer o que bem quiser.

O tempo, que em seis meses consegue colocar a maioria dos bebês para sentar, ainda não conquistou essa alegria com o Antonio. Engatinhar e andar também são projetos para o futuro, e nem ele, o tempo, sabe dizer ao certo quando essas habilidades vão começar a se manifestar. Falar, comer sólidos, ler, escrever, correr. Incógnitas que estão tão lá pra frente que o próprio tempo ainda não tirou um tempo para pensar nelas. A passagem do tempo, que sempre se exibiu como solução para tudo, está mais perdida que caipira em cidade grande. E à medida que os meses se vão, e alguns atrasos se mantêm, a Ana e eu estamos tendo que colocar em prática um conselho que nos deram logo que o Antonio nasceu: trocar a palavra expectativa por esperança.

Como a maioria das religiões nos faz crer, o céu é o limite. Minha mulher e eu – e mais um monte de familiares, amigos e médicos – estamos fazendo todo o possível para ajudar o Antonio a crescer e a se desenvolver, no tempo dele, do jeito que for possível para ele. Às vezes é cansativo, às vezes é frustrante, mas volta e meia a gente é surpreendido com uma nova conquista, como vê-lo girar sozinho na cama para dormir de bruços. Uns dirão que foi graças a Deus. Outros dirão que era só uma questão de tempo. Não me importa. A emoção de cada vitória do Antonio é a mesma. E é motivo suficiente para eu acreditar que ele é capaz de mais.

quinta-feira, 3 de novembro de 2011

segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Estátuas não choram - Statues don't cry

Cineminha de domingo. Você está tranquilo, plenamente entretido com seu balde de pipoca, acompanhado por um litro de manteiga e mais outro de Coca-Cola, quando alguma cena do filme, sem mais nem menos, traz à tona a lembrança do seu avô falecido, ou do seu cachorro de infância, ou de qualquer outro ser vivo, ou morto, que faça suas glândulas lacrimais tremelicarem. Até aí tudo bem. O problema é quando o filme acaba e o maldito do lanterninha não espera nem os créditos começarem a subir para acender as luzes da sala. Não adianta tapar o rosto. Não adianta fingir que está procurando o celular embaixo da poltrona. Todo mundo sabe, todo mundo viu: você chorou.

Sua mulher, que deveria ser processada pelo Greenpeace de tanto papel que usou para enxugar os olhos, rapidamente saca os óculos escuros da bolsa e age como se nada tivesse acontecido. E você fica ali, provando sua incompetência em manter a reputação, incriminado por uma dupla de olhos ridiculamente inchados e vermelhos, sem contar o nariz escorrendo. A humilhação fica ainda pior quando você por coincidência encontra aquele indivíduo do trabalho, que você não lembra o nome, e que começou a roncar aos dez primeiros minutos do filme, e que por isso – só por isso – não sucumbiu à cena do enterro do cachorro. Você fica na dúvida se é melhor cumprimentar o sujeito ou se enfiar na lata de lixo. Mas não pensa muito a respeito, para não acabar junto com os sacos de pipoca.

Desconsiderando esses pequenos vexames do cotidiano, uma boa dose de choro sempre ajuda a levantar o Ibope, que o digam os bebês e os autores de novela das oito. Certamente você já ouviu falar daquelas imagens de santa que, entediadas com seu trabalho de estátua, de uma hora para outra decidem que são gente e começam a lacrimejar. Houve até um caso de uma que, com mais tino para negócios e percebendo a forte concorrência das colegas, teve a grande ideia de chorar sangue, embora eu e meus botões suspeitemos que tenha sido ketchup. A estratégia deu certo. Logo a santa estava em tudo o que é noticiário e multidões de curiosos invadiam a igreja, espremidos para ver e tocar a santa milagreira, prometendo mundos e fundos em troca de todo tipo de graça possível, na maioria das vezes impossível, num boom turístico de deixar o Mickey Mouse e a sua Disneylândia se roendo de inveja.

Acredito em Deus, rezo todas as noites e faço promessas regulares para Santo Antônio. Não tenho intenção alguma de zombar da fé ou das viagens de ninguém. Meu ponto é que algumas lágrimas aqui e acolá sempre causam uma enorme comoção. E se utilizadas no momento certo, podem lograr mais milagres do que muito santo por aí.

O namorado não quer casar? Diga que tudo bem, com ar de compreensão, e deixe uma discreta lágrima escorrer pelo canto do olho. Se o cara estiver em dúvida, garanto que marca a data.

Se for o contrário, se for ela que não quer morar junto sem antes gastar zigalhões numa festa de casamento, argumente que vocês podem utilizar esse dinheiro para dar a entrada no apartamento, para mergulhar na Polinésia, ou – aqui é preciso embargar a voz e encher os olhos d’água – para decorar o quarto do seu primeiro filho. Pode não funcionar. Talvez você tenha que torrar o seu suado dinheiro em bem-casados. Mas não custa tentar.

Eu confesso que gastei de bom grado os meus trocados, tanto na festa do casório, quanto para esperar o Antonio. E foi um investimento bem feito, porque se tornaram excelentes lembranças, que volta e meia surgem na memória e sempre fazem um cisco cair em cada um dos olhos. O interessante é que as cenas que mais retornam não são as ocasiões clássicas, como o dia em que ouvi pela primeira vez os batimentos cardíacos do meu filho. Para mim, foram mais marcantes os momentos de simples expectativa, como a tarde em que tirei centenas de fotos da Ana e do seu barrigão.

Certa noite, assim que deitamos na cama, a Ana dá um pulo e anuncia: a bolsa estourou. Achei que ia cuspir meu coração pela boca, mas fingi estar tranquilo diante da situação. Minha mulher também dissimulava seu nervosismo com bastante competência. E nesse me engana que eu gosto, fomos vivenciando aquela sequência de eventos que ocorre de forma parecida para todo mundo, começando pela corrida ao hospital, terminando no berro do neném.

Só que a vida não segue a lógica das comédias românticas e, para a minha surpresa, não houve berro do neném. Quando o Antonio saiu da barriga da Ana, ele não chorou. Ninguém nos deu os parabéns, ninguém mostrou o bebê para a gente, não tiramos aquela foto pós-parto em que todos saem horrorosos e lindos ao mesmo tempo, aos prantos de tanta emoção. Confuso por aquele silêncio inesperado, corri atrás do médico que levou meu filho dali. O choro do Antonio demorou pra vir. E quando finalmente veio, saiu fraco, soou diferente. Senti um fraquejo no corpo. A notícia ainda não tinha sido dada, mas eu já podia senti-la. Não estava tudo bem.

Nos minutos seguintes, fui avisado da suspeita de síndrome genética. Conversei com a Ana, liguei para a família, tomei algumas providências e depois de tudo mais ou menos ajeitado, fui para casa tomar um banho. Sozinho, escondido, chorei. Chorei como não fazia há muito tempo. Chorei de tristeza.

Em pouco tempo o desespero se transformou em raiva, depois em aceitação, depois em ação. Por instinto de sobrevivência, ou talvez por postura de vida, deixei o sofrimento cortar e sangrar, mas com a clara intenção de sair calejado lá na frente e retomar a vida.

Outro dia o escritor Paulo Coelho publicou que “a dor assusta quando mostra sua verdadeira face, mas seduz quando vem disfarçada como sacrifício ou renúncia.” Não poderia sintetizar melhor o desafio que tenho à minha frente nesse momento. A dor de ter um filho especial vem anestesiada pelo amor incondicional que se nutre a qualquer filho. E essa dor pode, mesmo nos pais mais esclarecidos, gerar uma falsa sensação de mártir, uma equivocada impressão de que somos seres humanos melhores porque renunciamos a muito, quando não a tudo, para cuidar das nossas crianças.

Pai e mãe são tudo igual. Meus desejos depois de ter o Antonio são os mesmos que os dos meus amigos que tiveram filhos. Quero dormir até tarde nos finais de semana, mesmo sabendo que isso é quase impossível. Quero acertar na loteria, pra não me preocupar com o preço das escolas. Quero ir ao cinema. Quero ter mais filhos e espero que eles berrem ao nascer.

Encontrei um canto aqui dentro para hospedar a minha dor, mas a tenho mantido fraca, com pouca água e pouca comida. Espero que um dia ela canse dessa vida de miséria e vá tentar a sorte em outro lugar. Ainda mais agora, que o Antonio tem reconhecido a minha voz e me olha com um esboço de sorriso quando falo com ele. Se você deixar, a vida mostra que rir é bem melhor do que chorar.


Statues don’t cry

Sunday movies. You are enjoying yourself, fully entertained with your popcorn bucket, followed by a jar of butter and one other of Coke, when some given scene in the movie, no warning, brings back the memory of your dead grandad, or childhood dog, or any other living being, or dead one, that make your lacrimal glands trumble. So far, so good. The problem is when the movie is over and the goddamn usher doesn’t wait until the credits are over to turn on the lights. It’s no use covering your face. It’s no use pretending you are looking for your cellphone under the chair. Everyone knows, everyone saw: you cried.

Your wife, that shoud be sued by Greenpeace for the amount of paper she used to clean her tears up, rapidly grabs her sunglasses off the purse and acts like nothing ever happened. And you lay there, proving your incompetence on keeping your reputation, framed by a pair of eyes foolishly swollen and red, not counting on the running nose. The humilliation gets even worse when, coincidently, you run into that fellow from work, whose name you just can’t recall, and who started snoring at the first ten minutes of the movie, and for that, just for that, didn’t succumb at the scene of the burial of the dog. You wonder if it is better to talk to the guy or to crawl into the garbage can. But you don’t give it too much thought, so you don’t end up along with the wasted popcorn bags.

Disregarding this little daily shames, a good dose of crying always help raising up the charts, say the babies and the screen writers. Certainly you’ve heard about those statues of saints that, bored with their job, suddenly decide they are just like real people and start dropping some tears. There was even one that, having a better feeling for business, and realizing the strong competition among its fellow statues, had the great idea of crying tears of blood, although I suspect that it had been ketchup. Strategy worked out. Soon the statue was all over the news and crowds of curious people were storming into its church, squeezed in to see and touch the miraculous sculpture, in a touristic boom that would let Mickey Mouse and his Disneyland gnawing of envy.

I believe in God, I pray everynight and I make regular promises to Saint Antonio. I have no intention of mocking the faith or any person’s delusion. My point is that some teardrops here and there always cause an enormous commotion. And if used properly, it can do more miracles than many saints around. Your boyfriend doesn’t want to get married? Say it is alright, with an understanding feeling, and let a discrete teardrop run down your face. If the guy is at least considering marrying you, I guarantee he sets the date.

If it is the other way around, if it is her that doesn’t want to move in together without spending millions on a wedding, argue that you can use that money to start paying for the apartment, to dive in Polynesia, or – here you must fill your eyes with water – to decorate your first son’s bedroom. It may not work. Maybe you will have to spend all your hard working money on the wedding cake. However, it never hurts to try.

I confess that I have spent willingly my pennies, not only at the wedding party, but also while expecting my son Antonio. And they were very well done investments, because they became great memories, that sometimes emmerge in my memory and always fill my eyes with tears. The interesting part is that the scenes that I remember the most aren’t those classic ones, such as the day that I heard my son’s heartbeat for the first time. To me, it was the moments of simple expectation that stood out, such as an ordinary sunny afternoon, when I took countless pictures of Ana and her big belly.

Few weeks after that, one given night Ana suddenly jumps from bed and announces: the water broke. I thought I was going to spit my heart out, but pretended being calm towards the situation. My wife also disguised her jitters with great competence. And in this “you could have fooled me” kind of thing, we were experiencing that sequence of events that occur in a similar way to everyone, starting at the run to the hospital, and ending at the baby’s scream.

However, life is not like in the movies. And, to my surprise, there was no baby scream. When Antonio came out of Ana’s belly, he didn’t cry. No one congratulated us. No one showed the baby to us. We didn’t take that after-deliver-baby’s-picture, in which everyone looks awful and beautiful at the same time, crying with excitement. Confused by that unexpected silence, I ran after the doctor that took my son out of the surgery room. Antonio’s cry took some time to happen. And when it finally happened, it came out weak, it just sounded different. I felt a weakness in my body. The news hadn’t been given yet, but I could see it coming. Something was wrong.

In the following minutes, I was told about a genetic syndrome suspition. I talked to Ana, I called our families, and, after everything sort of taken care, I went home to take a shower. Alone, hidden in my bathroom, I cried. I cried as I hadn’t for a long time. I cried because of the deepest sadness I’ve ever felt.

It didn’t take long for the despair to turn into anger, the anger turn into acceptance, and finally, the acceptance turn into action. For survival instinct, or maybe for life posture, I let the grieve cut and bleed, but with clear intention on getting out of there weathered out and get on with my life.

The other day, writer Paulo Coelho published that “pain scares us when it shows its true face, but seduces when it comes disguised as sacrifice or resignation”. I couldn’t better synthesize the challenge that I’m ahead at this moment. The pain of having a son with special needs comes numbed by the unconditional love that you nurish to any son. However, even on the most enlightened parents, that pain can generate a false sense of martyr, a mistaken impression that we are better human beings just because we renounce to a lot to take care of our children.

Parents are all the same. My desires after having Antonio are the same that the ones my friends had after having their children. I want to sleep late on the weekends, even thought I know that it is almost impossible. I want to hit the lottery, so I don’t have to worry on the price of the schools. I want to go to the movies. I want to have more kids and I hope that they scream out loud when being born. I found a corner inside my body to lodge my pain, but I have been keeping it weak, without much water or food. I hope someday this pain gets tired of this misery and try its luck in another body. Especially now, that Antonio has been acknowledging my voice and looks at me with a sketch of a smile when I talk to him. If you let, life shows that laughing is much better than crying.

Tradução: Alexandre Marcílio