Cineminha
de domingo. Você está tranquilo, plenamente entretido com seu balde
de pipoca, acompanhado por um litro de manteiga e mais outro de
Coca-Cola, quando alguma cena do filme, sem mais nem menos, traz à
tona a lembrança do seu avô falecido, ou do seu cachorro de
infância, ou de qualquer outro ser vivo, ou morto, que faça suas
glândulas lacrimais tremelicarem. Até aí tudo bem. O problema é
quando o filme acaba e o maldito do lanterninha não espera nem os
créditos começarem a subir para acender as luzes da sala. Não
adianta tapar o rosto. Não adianta fingir que está procurando o
celular embaixo da poltrona. Todo mundo sabe, todo mundo viu: você
chorou.
Sua
mulher, que deveria ser processada pelo Greenpeace de tanto papel que
usou para enxugar os olhos, rapidamente saca os óculos escuros da
bolsa e age como se nada tivesse acontecido. E você fica ali,
provando sua incompetência em manter a reputação, incriminado por
uma dupla de olhos ridiculamente inchados e vermelhos, sem contar o
nariz escorrendo. A humilhação fica ainda pior quando você por
coincidência encontra aquele indivíduo do trabalho, que você não
lembra o nome, e que começou a roncar aos dez primeiros minutos do
filme, e que por isso – só por isso – não sucumbiu à cena do
enterro do cachorro. Você fica na dúvida se é melhor cumprimentar
o sujeito ou se enfiar na lata de lixo. Mas não pensa muito a
respeito, para não acabar junto com os sacos de pipoca.
Desconsiderando
esses pequenos vexames do cotidiano, uma boa dose de choro sempre
ajuda a levantar o Ibope, que o digam os bebês e os autores de
novela das oito. Certamente você já ouviu falar daquelas imagens de
santa que, entediadas com seu trabalho de estátua, de uma hora para
outra decidem que são gente e começam a lacrimejar. Houve até um
caso de uma que, com mais tino para negócios e percebendo a forte
concorrência das colegas, teve a grande ideia de chorar sangue,
embora eu e meus botões suspeitemos que tenha sido ketchup. A
estratégia deu certo. Logo a santa estava em tudo o que é
noticiário e multidões de curiosos invadiam a igreja, espremidos
para ver e tocar a santa milagreira, prometendo mundos e fundos em
troca de todo tipo de graça possível, na maioria das vezes
impossível, num boom
turístico de deixar o Mickey Mouse e a sua Disneylândia se roendo
de inveja.
Acredito
em Deus, rezo todas as noites e faço promessas regulares para Santo
Antônio. Não tenho intenção alguma de zombar da fé ou das
viagens de ninguém. Meu ponto é que algumas lágrimas aqui e acolá
sempre causam uma enorme comoção. E se utilizadas no momento certo,
podem lograr mais milagres do que muito santo por aí.
O
namorado não quer casar? Diga que tudo bem, com ar de compreensão,
e deixe uma discreta lágrima escorrer pelo canto do olho. Se o cara
estiver em dúvida, garanto que marca a data.
Se
for o contrário, se for ela que não quer morar junto sem antes
gastar zigalhões numa festa de casamento, argumente que vocês podem
utilizar esse dinheiro para dar a entrada no apartamento, para
mergulhar na Polinésia, ou – aqui é preciso embargar a voz e
encher os olhos d’água – para decorar o quarto do seu primeiro
filho. Pode não funcionar. Talvez você tenha que torrar o seu suado
dinheiro em bem-casados. Mas não custa tentar.
Eu
confesso que gastei de bom grado os meus trocados, tanto na festa do
casório, quanto para esperar o Antonio. E foi um investimento bem
feito, porque se tornaram excelentes lembranças, que volta e meia
surgem na memória e sempre fazem um cisco cair em cada um dos olhos.
O interessante é que as cenas que mais retornam não são as
ocasiões clássicas, como o dia em que ouvi pela primeira vez os
batimentos cardíacos do meu filho. Para mim, foram mais marcantes os
momentos de simples expectativa, como a tarde em que tirei centenas
de fotos da Ana e do seu barrigão.
Certa
noite, assim que deitamos na cama, a Ana dá um pulo e anuncia: a
bolsa estourou. Achei que ia cuspir meu coração pela boca, mas
fingi estar tranquilo diante da situação. Minha mulher também
dissimulava seu nervosismo com bastante competência. E nesse me
engana que eu gosto, fomos vivenciando aquela sequência de eventos
que ocorre de forma parecida para todo mundo, começando pela corrida
ao hospital, terminando no berro do neném.
Só
que a vida não segue a lógica das comédias românticas e, para a
minha surpresa, não houve berro do neném. Quando o Antonio saiu da
barriga da Ana, ele não chorou. Ninguém nos deu os parabéns,
ninguém mostrou o bebê para a gente, não tiramos aquela foto
pós-parto em que todos saem horrorosos e lindos ao mesmo tempo, aos
prantos de tanta emoção. Confuso por aquele silêncio inesperado,
corri atrás do médico que levou meu filho dali. O choro do Antonio
demorou pra vir. E quando finalmente veio, saiu fraco, soou
diferente. Senti um fraquejo no corpo. A notícia ainda não tinha
sido dada, mas eu já podia senti-la. Não estava tudo bem.
Nos
minutos seguintes, fui avisado da suspeita de síndrome genética.
Conversei com a Ana, liguei para a família, tomei algumas
providências e depois de tudo mais ou menos ajeitado, fui para casa
tomar um banho. Sozinho, escondido, chorei. Chorei como não fazia há
muito tempo. Chorei de tristeza.
Em
pouco tempo o desespero se transformou em raiva, depois em aceitação,
depois em ação. Por instinto de sobrevivência, ou talvez por
postura de vida, deixei o sofrimento cortar e sangrar, mas com a
clara intenção de sair calejado lá na frente e retomar a vida.
Outro
dia o escritor Paulo Coelho publicou que “a dor assusta quando
mostra sua verdadeira face, mas seduz quando vem disfarçada como
sacrifício ou renúncia.” Não poderia sintetizar melhor o desafio
que tenho à minha frente nesse momento. A dor de ter um filho
especial vem anestesiada pelo amor incondicional que se nutre a
qualquer filho. E essa dor pode, mesmo nos pais mais esclarecidos,
gerar uma falsa sensação de mártir, uma equivocada impressão de
que somos seres humanos melhores porque renunciamos a muito, quando
não a tudo, para cuidar das nossas crianças.
Pai
e mãe são tudo igual. Meus desejos depois de ter o Antonio são os
mesmos que os dos meus amigos que tiveram filhos. Quero dormir até
tarde nos finais de semana, mesmo sabendo que isso é quase
impossível. Quero acertar na loteria, pra não me preocupar com o
preço das escolas. Quero ir ao cinema. Quero ter mais filhos e
espero que eles berrem ao nascer.
Encontrei
um canto aqui dentro para hospedar a minha dor, mas a tenho mantido
fraca, com pouca água e pouca comida. Espero que um dia ela canse
dessa vida de miséria e vá tentar a sorte em outro lugar. Ainda
mais agora, que o Antonio tem reconhecido a minha voz e me olha com
um esboço de sorriso quando falo com ele. Se você deixar, a vida
mostra que rir é bem melhor do que chorar.
Statues don’t cry
Sunday movies. You are enjoying
yourself, fully entertained with your popcorn bucket, followed by a jar of
butter and one other of Coke, when some given scene in the movie, no warning,
brings back the memory of your dead grandad, or childhood dog, or any other
living being, or dead one, that make your lacrimal glands trumble. So far, so
good. The problem is when the movie is over and the goddamn usher doesn’t wait
until the credits are over to turn on the lights. It’s no use covering your
face. It’s no use pretending you are looking for your cellphone under the
chair. Everyone knows, everyone saw: you cried.
Your wife, that shoud be sued
by Greenpeace for the amount of paper she used to clean her tears up, rapidly
grabs her sunglasses off the purse and acts like nothing ever happened. And you
lay there, proving your incompetence on keeping your reputation, framed by a
pair of eyes foolishly swollen and red, not counting on the running nose. The
humilliation gets even worse when, coincidently, you run into that fellow from
work, whose name you just can’t recall, and who started snoring at the first ten
minutes of the movie, and for that, just for that, didn’t succumb at the scene
of the burial of the dog. You wonder if it is better to talk to the guy or to
crawl into the garbage can. But you don’t give it too much thought, so you
don’t end up along with the wasted popcorn bags.
Disregarding this little
daily shames, a good dose of crying always help raising up the charts, say the
babies and the screen writers. Certainly you’ve heard about those statues of saints
that, bored with their job, suddenly decide they are just like real people and
start dropping some tears. There was even one that, having a better feeling for
business, and realizing the strong competition among its fellow statues, had
the great idea of crying tears of blood, although I suspect that it had been
ketchup. Strategy worked out. Soon the statue was all over the news and crowds
of curious people were storming into its church, squeezed in to see and touch
the miraculous sculpture, in a touristic boom that would let Mickey Mouse and
his Disneyland gnawing of envy.
I believe in God, I pray
everynight and I make regular promises to Saint Antonio. I have no intention of
mocking the faith or any person’s delusion. My point is that some teardrops
here and there always cause an enormous commotion. And if used properly, it can
do more miracles than many saints around. Your boyfriend doesn’t want to get
married? Say it is alright, with an understanding feeling, and let a discrete
teardrop run down your face. If the guy is at least considering marrying you, I
guarantee he sets the date.
If it is the other way
around, if it is her that doesn’t want to move in together without spending
millions on a wedding, argue that you can use that money to start paying for
the apartment, to dive in Polynesia, or – here you must fill your eyes with
water – to decorate your first son’s bedroom. It may not work. Maybe you will have
to spend all your hard working money on the wedding cake. However, it never hurts
to try.
I confess that I have spent
willingly my pennies, not only at the wedding party, but also while expecting my
son Antonio. And they were very well done investments, because they became great
memories, that sometimes emmerge in my memory and always fill my eyes with
tears. The interesting part is that the scenes that I remember the most aren’t
those classic ones, such as the day that I heard my son’s heartbeat for the
first time. To me, it was the moments of simple expectation that stood out, such
as an ordinary sunny afternoon, when I took countless pictures of Ana and her
big belly.
Few weeks after that, one
given night Ana suddenly jumps from bed and announces: the water broke. I thought
I was going to spit my heart out, but pretended being calm towards the
situation. My wife also disguised her jitters with great competence. And in
this “you could have fooled me” kind of thing, we were experiencing that sequence
of events that occur in a similar way to everyone, starting at the run to the
hospital, and ending at the baby’s scream.
However, life is not like in
the movies. And, to my surprise, there was no baby scream. When Antonio came
out of Ana’s belly, he didn’t cry. No one congratulated us. No one showed the
baby to us. We didn’t take that after-deliver-baby’s-picture, in which everyone
looks awful and beautiful at the same time, crying with excitement. Confused by
that unexpected silence, I ran after the doctor that took my son out of the
surgery room. Antonio’s cry took some time to happen. And when it finally
happened, it came out weak, it just sounded different. I felt a weakness in my
body. The news hadn’t been given yet, but I could see it coming. Something was
wrong.
In the following minutes, I
was told about a genetic syndrome suspition. I talked to Ana, I called our
families, and, after everything sort of taken care, I went home to take a
shower. Alone, hidden in my bathroom, I cried. I cried as I hadn’t for a long
time. I cried because of the deepest sadness I’ve ever felt.
It didn’t take long for
the despair to turn into anger, the anger turn into acceptance, and finally,
the acceptance turn into action. For survival instinct, or maybe for life
posture, I let the grieve cut and bleed, but with clear intention on getting
out of there weathered out and get on with my life.
The other day, writer Paulo
Coelho published that “pain scares us when it shows its true face, but seduces
when it comes disguised as sacrifice or resignation”. I couldn’t better synthesize
the challenge that I’m ahead at this moment. The pain of having a son with special
needs comes numbed by the unconditional love that you nurish to any son. However,
even on the most enlightened parents, that pain can generate a false sense of martyr,
a mistaken impression that we are better human beings just because we renounce
to a lot to take care of our children.
Parents are all the same. My
desires after having Antonio are the same that the ones my friends had after
having their children. I want to sleep late on the weekends, even thought I
know that it is almost impossible. I want to hit the lottery, so I don’t have
to worry on the price of the schools. I want to go to the movies. I want to
have more kids and I hope that they scream out loud when being born. I found a
corner inside my body to lodge my pain, but I have been keeping it weak, without much
water or food. I hope someday this pain gets tired of this misery and try its
luck in another body. Especially now, that Antonio has been acknowledging my
voice and looks at me with a sketch of a smile when I talk to him. If you let,
life shows that laughing is much better than crying.
Tradução: Alexandre Marcílio